Prefiro a interpretação de Mário Viegas, mas só a encontrei com mau som e dividida em dois videos. Fica o João Villaret a dizer através do Álvaro de Campos (ou a inversa) o essencial do penso sobre o discurso da ciência
Este meu post deu origem a algumas reacções iradas (no sentido português, mais chão, não tanto no sentido brasileiro da palavra), tanto nos comentários como no Facebook.Como diz o Carlos Aguiar nos comentários (uma interessante discussão entre o Miguel Araújo e o Carlos Aguiar vale a visita aos comentários) há um problema de emissão da mensagem, a ironia que o post encerra pode não ser clara ao faltarem-lhe um conjunto de sinais conexos da linguagem face a face, as entoações, as pausas, os olhos, os risos e os rictus. De acordo sobre isso.
Mas mesmo sabendo que me falta a inteligência emocional e a competência social necessária para antecipar as leituras que terceiros farão do que escrevo, a verdade é que vou continuar a escrever ironicamente coisas como as que escrevi, contando com a inteligência dos leitores para distinguir o que é para ser levado à letra e o que é ênfase comunicacional. O que significa comprar o risco de pessoas que prezo e considero se considerarem ofendidas. E a minha disponibilidade para lhes pedir desculpa se se sentirem ofendidas, mesmo que eu não perceba onde está a ofensa. É que não existe ironia explícita, a ironia é por definição um mundo de enganos. É isso que a torna tão corrosiva, mas também tão eficaz para nos confrontarmos com o que pensamos. Se pensamos que conhecemos a realidade, pensamos mal.
Mas também por isso gostaria de voltar ao assunto: o discurso da ciência e as pessoas comuns.
Há uma maneira fácil de lidar com a distância entre o discurso científico e as pessoas comuns: mandar as pessoas comuns estudarem para serem especialistas com capacidade para conversar com especialistas. É uma forma fácil, como disse, mas razoavelmente inútil para quem, como eu, está mais interessado na informação útil que na informação verdadeira.
Informação útil e informação verdadeira não são antónimos, e é difícil a informação errada ser útil para intervir na realidade. Mas há um grau de precisão e rigor na informação, que é perseguido pela ciência, que é muito pouco útil no quotidiano das pessoas comuns.
Dois exemplos clássicos: para a grande maioria das decisões diárias das pessoas comuns (e toda a gente pode ser ao mesmo tempo uma pessoa excepcional nalguns campos e uma pessoa comum em grande parte do seu dia a dia) é irrelevante se o sol anda à volta da terra ou a inversa. Da mesma forma, há poucos campos científicos tão complexos como a física da atmosfera e no entanto todos os dias se produzem milhares de boletins meteorológicos que milhões de pessoas comuns entendem e usam no seu dia a dia.
Com isto não desvalorizo, de maneira nenhuma, a procura da verdade que é a essência da ciência e da academia. Nem desvalorizo a necessidade de criação de códigos de linguagem específicos e comuns que possam salvaguardar o rigor da comunicação entre iniciados, como acontece com a música, por exemplo.
A questão é outra. Numa plateia de músicos de topo, se for rolando uma pauta num ecrán, todos estarão de facto a ouvir a música, com pequenas divergências, mesmo que nenhum som seja produzido. Mas não passa pela cabeça de ninguém pretender que o objectivo dessa pauta não seja meramente instrumental, de modo a criar a possibilidade de comunicação entre o compositor e o seu público, através de um mediador qualificado (e livre de interpretar a pauta, dentro de limites reconhecidos mais ou menos por todos). Se um grupo de compositores decidirem começar uma linguagem de registo da composição diferente, mais rigoroso, para fixar todo o rigor da interpretação que pretendam que se faça, naturalmente arriscam-se a fechar-se cada vez mais no seu mundo, até por deixarem de ter mediadores qualificados que os entendam. E isso será tanto mais profundo quanto essa linguagem for complexa e exigir uma aprendizagem mais longa e trabalhosa.
Ora há muitos anos que isso se passa na geologia, há menos na fitossociologia e não tarda muito se passará na ecologia da paisagem. Não se trata da complexidade da linguagem matemática necessária para capturar a abstracção que permite descrever (aproximadamente, ou seja, com a aproximação útil para os objectivos pretendidos) os fenómenos físicos associados à ciência dos foguetões e dos satélites, trata-se de uma linguagem que pretende codificar realidades que são intrinsecamente únicas e cada vez mais diversas à medida que se aumenta a aproximação à realidade em estudo.
A geologia, as associações vegetais, as paisagens, ao contrário das espécies, não têm um código genético unificador. E ao contrário da física da atmosfera, não têm padrões estatísticos globais, que se verificam aqui ou na Indochina.
São resultados de processos complexos, temporalmente longos, em que os milhares de factores que os condicionam se alteram com o bater das asas de uma borboleta, sendo que a forma como essas mudanças ocorrem também ela está em permanente mudança.
Por isso estes três campos do conhecimento (falo destes, por serem dos que mais se relacionam com os meus objectos de trabalho, juntamente com o clima, que é um pouco diferente) são sobretudo descritivos e muito pouco preditivos.
Eu percebo a procura de linguagens crescentemente complexas e padronizadas por parte dos especialistas.
O que não percebo é que se despreze a procura da comunicação com terceiros limitando a complexificação da linguagem às pouquíssimas situações em que ela faz falta.
Eu olho para uma carta geológica e perco tempos sem fim para perceber minimamente o que me interessa para o que quero. O mesmo se passa com a fitossociologia. Se a biogeografia de Portugal tivesse um mínimo de preocupação em comunicar com leigos (mesmo que qualificados) seria hoje um documento muito mais influente do que já é. Passa-se menos com a ecologia da paisagem porque não ligo muito ao que é produzido nessa área, por não me fazer falta (ao contrário da geologia ou da fitossociologia). Como sou velho e vou conhecendo muita gente, é-me fácil ir ter com um mediador qualificado e perguntar o que quer dizer o que ali está escrito.
O que para mim é mais espantoso é que em 99% dos casos em cinco minutos me dizem meia dúzia de coisas, que poderiam estar escritas à laia de resumo não técnico, que me abrem as portas de par em par para o acesso à informação que me faz falta.
É isso que me faz escrever estes posts. A consciência, de experiência feita, de que com um mínimo de respeito pelas pessoas comuns e de preocupação pelo reconhecimento social do trabalho que fazem, qualquer destes especialistas escreveria, sem grande esforço, meia dúzia de coisas que alargariam enormemente a utilidade social do seu trabalho.
Não percebo porque não o fazem mais vezes.
"A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra."
henrique pereira dos santos
6 comentários:
Neste livro preocupei-me em definir todos os conceitos de fitossociologia a partir dos fundamentos e sem recurso a nada que uma pessoa com uma formação corrente em biologia não possa entender. Se falho nesse objectivo é por falta de eloquência e não de vontade. Cumprimentos.
Jorge Capelo
http://dl.dropbox.com/u/29823096/Fitos_JCapelo.pdf
PS. É um livro de texto sobre fundamentos e metodologia, não é um podromus da vegetação portuguesa.
Cumps.
JC.
Jorge,
Obrigado pelo livro. Já o gravei e dei uma vista de olhos, um pouco mais demorada nas matérias que me são mais próximas (as da paisagem).
Penso que os dois concordaremos que a eloquência não fará parte dos teus pontos fortes, mas isso não é a questão essencial.
O livro que disponibilizas é um "manual" de fitossociologia, não é exactamente um dicionário que possa apoiar os mediadores na sua tarefa de integração da produção científica da fitossociologia, independentemente de reservar uma opinião mais fundamentada para depois de ver o livro com mais atenção. Parece-me uma ajuda, mas difícil de ser usada quando uma pessoa se depara com um texto como o que citei no outro post.
A questão essencial é que fazes um livro para ensinar aos outros o que sabes. Quem dera mais gente fizesse isso com mais frequência em algumas áreas. Mas isso não resolve o problema da falta de atenção às perguntas dos outros. Perguntas banais, perguntas básicas, perguntas de quem não estudou o suficiente, isso tudo é verdade. Mas perguntas que muitas vezes não têm respostas fáceis.
Já disse isto, eu resolvo isso com dois ou três telefonemas ou mails, porque com os anos fui conhecendo muita gente que não se importa de me prestar esse serviço de borla e de forma personalizada.
O que me parece é que falta um esforço real de perceber as dificuldades dos outros (esclarecidos que estão os mal-entendidos acho que sem problema posso dar o exemplo da reacção ao meu post, que eu percebo, é certo, mas que continuo a pensar que reflecte alguma entricheiramento, a que sou especialmente sensível porque me deparei com ele várias vezes a propósito das discussões públicas sobre a rede natura.
Enfim, penso que já percebemos os pontos de vista de cada um e agora temos é de um dia organizarmos aí uma sessão de comes e bebes com fitossociologia e comunicação como tema.
henrique pereira dos santos
Jorge,
Obrigado por partilhares o texto. Tentarei arranjar tempo para o ler e talvez comente um aspeto ou outro. Não obstante, uma breve leitura da tua lista bibliográfica parece confirmar a opinião que expressei anteriormente. O grosso das referências que usas são anteriores aos anos 90, muitas delas sendo do século XIX e da primeira metade do século XX. A maior parte das poucas referências que publicadas nos anos 90 referem-se a métodos quantitativos (o que é normal visto que a banalização destes métodos ocorreu tardiamente face aos desenvolvimentos teóricos que referes) e casos de estudo modernos.
Sendo de louvar o esforço de contextualização histórica que fazes, algo que vai sendo raro nos dias de hoje, é conspícuo a falta de conexão das tuas reflexões com os desenvolvimentos mais recentes da ecologia (uma ciência que tem estado num turbilhão intelectual nos últimos 20 anos). Muitos destes desenvolvimentos questionam princípios basilares da fitossociologia (por exemplo, o artigo que te sugeri de Bob Ricklefs). Outros deveriam, pelo menos, motivar uma reflexão profunda de conceitos e metodologias. Deduz-se desta seleção de referências que a fitossociologia parou no tempo e que, provavelmente, parte da explicação para este parco dinamismo se deve ao isolamento que parente ter face a outros ramos disciplinares conexos. Consideras errada a minha dedução?
Miguel, a minha resposta é simples: o livro foi escrito há quase 12 anos atrás. Mesmo relativamente aquilo que penso e que julgo saber acerca do assunto está um bocado datado. De facto, nessa altura, estive muito centrado nas discussões que ocorreram nos meados de 80s - fins de 90s sobretudo na revista Vegetatio (futuro Journal of Vegetation Science). Nem sequer era meu objectivo fazer algum tipo de apologia entrando demasiado na dialética com teses alternativas. Era uma formulação da fitossociologia tal como eu a começava a praticar na altura. Devo dizer que fitossociologia é apenas uma parte daquilo que faço. Muitos artigos meus são neutros e 'mainstream' relativamente ás ciências da vegetação ( e pesadamente quantitativos). Embora estejam em preparação, tenho dois textos para publicar que são evolutionary vegetation ecology (phytosociology…). Secundariamente fazem senso de algumas teses históricas da fitossociologia, porque acho que o benefício é grande, digo o de não reinventar demasiadas ‘rodas’. O artigo que ligo em baixo, que é quase um artigo meramente técnico - i.e. sem grande contribuição teórica - tornou clara na minha cabeça a distinção entre as 'etologias' as comunidades arbustivas altas da Pistacio-Rhamnetalia alaterni e classes fitossociológicas de arbustos pioneiros (Calluno-Ulicetea, Cisto-Lavanduletea, por exemplo.
http://fireecology.net/docs/Journal/pdf/Volume06/Issue03/001.pdf
Jorge Capelo
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