quinta-feira, abril 26, 2012

Avaliação de políticas de conservação


A discussão sobre conservação do lince dos últimos posts, que é, em muitos aspectos, semelhante à discussão sobre os fogos, interessa-me sobretudo enquanto gestor de recursos (tal como a discussão dos fogos).
E como gestor de recursos a questão não é a de saber se se conseguem obter resultados positivos mas sim se se conseguem obter resultados positivos com o mínimo de recursos possível.
Vejamos o que tem vindo a ser dito de algum tempo a esta parte: o lince está a recuperar porque houve 50 milhões de euros investidos mas ainda está numa situação de enorme fragilidade pelo que é fundamental manter estes níveis de financiamento.
Vejamos o que eu digo: o lince está a recuperar porque a população de coelho está a recuperar e a maior fragilidade que existe é a de que uma nova doença do coelho provoque nova regressão nas populações de coelho, situação em que é relativamente indiferente o que quer que se invista na conservação de lince in situ.
As duas interpretações da realidade são mais ou menos lógicas e mais ou menos compatíveis com a evidência empírica conhecida. Divergem em dois pontos essenciais: 1) a primeira interpretação diz que a recuperação de coelho resulta dos investimentos feitos; 2) a primeira interpretação diz que pode haver recuperação de coelho sem que isso se reflicta na conservação do lince porque não existem populações dadoras. A segunda interpretação contesta esta dois pontos.
Há portanto que procurar a informação empírica que existe para ir o mais longe possível na fixação de informação empírica que possa reduzir a amplitude das interpretações.
Comecemos por procurar estabelecer uma cronologia, o que é sempre útil em processos dinâmicos e complexos.
O que sabemos sobre a população de lince é que há um recuo ao longo do século XX (não sabemos grandes pormenores), em especial na segunda metade do século XX, que é muito acentuado a partir do fim dos anos 80 do século XX, havendo uma recuperação a partir de 2002 (mais ano menos ano).
O que sabemos sobre a população de coelho é que foi vítima de uma doença nos anos 50 que conduziu a uma redução da sua população entre 90 a 95% e que teve depois uma recuperação que foi de novo abruptamente cortada por outra doença no fim dos anos 80 do século XX, estando a recuperar mais ou menos desde os anos 2000 (mais ano, menos ano). Sobre esta dinâmica da população de coelho convém ter em atenção que embora exista muita literatura que relaciona esta dinâmica com alterações de uso do solo e com sobre-caça não há informação empírica que possa suportar qualquer ideia de alterações de população da ordem dos 90%, seguidas de recuperações, se não as doenças. Todos os outros factores não têm qualquer sobreposição cronológica com as variações de coelho.
Sabemos ainda que o primeiro life na andaluzia (é o que interessa para este efeito) é de 1994 a 1999, mas foi sobretudo de aquisição de conhecimento e sensibilização, portanto sem efeito real na recuperação quer do coelho, quer do lince. O segundo LIFE é aprovado, activo entre 2002 e 2006. Durante este projecto aumentou o número de linces em quase 50% e os territórios entre 25% e 30%. Mas também sabemos que em Castilla la Mancha, onde não houve projecto life nenhum, a população de coelhos e lince também aumentou substancialmente. Note-se que só na serra Morena o aumento de linces de 2003 para 2004 foi de 15%, sendo mais que duvidoso que se possa atribuir este crescimento, numa espécie como um mamífero do topo da cadeia trófica, a acções feitas no ano anterior. Acresce que em Doñana, onde o mesmo projecto LIFE foi executado, a população de linces aumentou razoavelmente de 2003 para 2004 (10%) mas diminui no ano seguinte (-5%). Ou seja, é muito difícil estabelecer uma relação directa entre a execução das acções de conservação e a dinâmica da espécie.
O life lince vem depois, seguindo basicamente os mesmos princípios.
Não é de estranhar que o efeito destes projectos seja razoavelmente marginal para a dinâmica das espécies. Basta notar que os cerca de 50 000 000 de euros, se fossem totalmente investidos em gestão de habitat, representariam cerca de 600 euros por hectare em dez anos, ou seja, cerca de 60 euros por hectare por ano, que é menos que o custo de uma gradagem. Ou seja, o investimento do projecto em gestão do terreno (e é evidente que a maioria do dinheiro não vai para essas actividades) é incomparavelmente mais pequeno que o investimento feito pela economia do território.
Em áreas extensas é natural que os factores económicos que gerem o território tenham incomparavelmente mais peso que qualquer política de conservação, que é sempre uma política supletiva, assente em recursos gerados noutro lado qualquer e transferidos via impostos ou filantropia.
Quer uma leitura cronológica, quer uma leitura de disponibilização de recursos apontam no sentido de que os efeitos positivos das políticas de fomento da espécie in situ são marginais para a sua dinâmica.
É por isso, porque os recursos serão sempre escassos e suplementares face às tendências socio-económicas, que é preciso ser muito rigoroso na discussão da utilidade de cada tostão em matéria de conservação.
Uma coisa é criar uma válvula de segurança mantendo em cativeiro uma população que em qualquer altura pode ser usada para uma reintrodução se se verificar uma situação limite como a que existia no fim dos anos 90, outra coisa, substancialmente diferente, é pretender manter um programa de reintroduções que manifestamente não é necessário neste momento.
As flutuações bruscas de populações que se reproduzem como coelhos não resultam de outros factores que não as doenças. É dos livros. Em prazos mais longos, alterações profundas de habitat podem ter efeitos semelhantes, mas raramente em espécies tão plásticas como coelhos ou lobos, que são espécies adaptadas e adaptáveis a diferentes condições de habitat. Note-se que ao longo do tempo, nos últimos milhares de anos, com óptimo climático medieval, com pequena idade do gelo, nunca a população de coelho se ressentiu das alterações climáticas da mesma forma que se ressentiu das epidemias (algumas delas, como se sabe, desenvolvidas em laboratório, coisa que hoje é mais difícil fazer).
É portanto razoável e sensato manter em cativeiro uma população de linces gerida para poder dar resposta a um eventual colapso das populações de coelho, que pode acontecer em qualquer altura. E os programas de reintrodução podem ter utilidade para acelerar o processo de recuperação quando a população de coelho recupera. Ou mesmo para iniciar a reintrodução se a espécie se extinguir na natureza, o que é possível.
O que não é razoável é continuar a investir milhões na recuperação de uma espécie que está a crescer a 10% ao ano com o argumento de que ainda é preciso andar a reintroduzir linces.
Ou seja, a longo prazo as duas linhas de trabalho para a conservação do lince são: 1) manter em cativeiro uma população que possa ser usada em situações limite; 2) fazer um seguimento epidemiológico das populações de coelho e actuar rapidamente na contenção dos estragos logo que uma uma nova epidemia se declare (como aliás fazemos com os humanos).
Ou dito de outra maneira, nunca desvalorizei os riscos associados a variações bruscas das populações, nem usei tendências de curto prazo para tirar conclusões de longo prazo, bem pelo contrário, tenho usado tendências de longo prazo para criticar as conclusões precipitadas de um monte de especialistas, nomeadamente os muitos que há dez anos ridicularizavam as afirmações que eu já então fazia (e não era o único, mas éramos muito poucos) prevendo que mal a população de coelho recuperasse a população de lince também o faria.
O difícil era perceber o que ia acontecer ao coelho.
Depois desta discussão toda do que me penitencio é da minha estupidez me ter impedido de perceber nessa altura, há dez anos e mais, que sendo a população de coelho atreita a doenças e a surtos epidémicos que provocam flutuações brutais nas suas densidades, o mais natural é que uma espécie que co-evolui com o coelho, como o lince, também tenha mecanismos adaptativos para esta realidade, que é o que parece demonstrar o crescimento extraordinário de 10% da população ao ano que a população de lince vem mostrando.
Se assim for, provavelmente já nos anos cinquenta e sessenta o lince terá tido uma regressão violenta da população, o que explica o baixíssimo número de caçadores que afirmam ter morto um lince nesses anos.
É uma hipótese que gostaria de testar. Se assim for os linces que se encontraram na Malcata, no Sado, em Mira, na serra de Aire, por alturas dos anos 80, não eram os restos de populações maiores mas, pelo contrário, eram os pontas-de-lança da recuperação que se estava a verificar e foi bruscamente interrompida com a pneumonia hemorrágica viral do coelho.
Anotemos então a previsão de ver linces na serra de Aire, em Monfurado e Cabrela, talvez nas dunas de Mira, num prazo de dez a quinze anos.
Escrito e assinado por mim, para nessa altura discutir quem faz análises ligeiras ou não.
Felizmente a minha reputação já não é grande coisa, de maneira que posso jogá-la assim ao poker.
henrique pereira dos santos

10 comentários:

Rui Pedro Lérias disse...

Concordo. Eu fiz uma PVA do lince ibérico para a minha tese de licenciatura e a minha principal conclusão foi essa: o coelho tudo dita. Brinquei com vários parâmetros e foi a fecundidade que melhor imitou a realidade. E a fecundidade depende do coelho.

Curiosamente enviei uma cópia para a malta de Doñana que trabalhava com lince mas nem um obrigado recebi, mesmo que aquilo que produzi tenha sido muito mau (não era, acho eu). 2 ou 3 anos depois eles publicavam uma PVA e nem a minha citaram. Não que me importa, não a publiquei, nem liguei muito àquilo e os jogos da literatura em ciência são demasiado aborrecidos.

Mas tem havido uma clara vontade de ir buscar fundos e não de ajudar o lince da maneira mais eficiente em termos de recursos.

Ou seja, concordo com o Henrique. Apesar de não estar tão optimista quanto à recuperação do coelho.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Rui Pedro,
Não estou nem deixo de estar optimista em relação ao coelho, mas toda a gente, da mais conservadora e cautelosa aos mais expansivos, me garante que o coelho está a recuperar mais ou menos em todo o lado (se atinge ou não densidades suficientemente elevadas isso é outra discussão, para a qual não tenho informação). Como a recuperação dos seus predadores é generalizada (Lince, 10% ao ano, no mínimo, águia imperial, bonelli, águia real, o que se quiser) não tenho razões para suspeitar que essa recuperação não seja generalizada e intensa.
Depois há áreas onde a alteração de habitat pode estar a andar no sentido errado com força suficiente para limitar essa recuperação, como é o caso do Noroeste onde a produtividade primária é mais alta e os bichos de clareira estão mais aflitos.
De um momento para o outro tudo isto se pode alterar com uma nova doença, mas isso...
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Talvez um pouco fora de tempo e do sítio certo, torno ao lince.

Um amigo meu que leu os últimos posts na Ambio sobre o lince disse que era uma "guerra aberta". Talvez o seja. Mas curiosíssimo é o facto das pessoas que movimentam os milhões dos lifes linces entrarem nestas guerras mudas e saírem caladas. Eu compreendo porquê. A guerra deles é outra. É saberem quem é a pessoa certa, é terem os contactos, é preparar o terreno para os milhões.

Os projectos deverão ser em cascata, ouvi-o não sei bem a quem. Em Portugal o life-lince acabou há uns tempos, venha logo outro life-lince-tentilhão. Desde que a massa flua como ninfa pelos rios das montanhas, haverá mais mansos nas grandes ADAs que os bois amarelos nas serras do antigamente, queixas e confusões apenas qb para não parecer mal. Mas que não seque a corrente cristalina que facilita a vida...

Sinceramente pensei que este novo governo mandasse às ortigas a rapaziada que não procura trabalho em empresas, ou que não tenta arrancar com uma. Mas é assim a vida. Está para os espertos, como sempre por cá esteve e por certo irá estar.

Ainda os havemos de ver a receber milhões em projectos dead-javalis-veados devido à tuberculose que ameaça a saúde pública. Ensinarem os criadores de gado e caçadores a extirpar a doença, técnicas de tiro, de espera, de aproximação e outras, tal como ensinaram os caçadores a criar e soltar na natureza os coelhos dos linces. Isto porque ninguém duvida que foram os cientistas da Natureza quem promoveu o aparecimento de javalis e veados nos nossos campos, serras e matos, logicamente a eles caberá resolver o problema.
Jaime

G.E. disse...

"Mas também sabemos que em Castilla la Mancha, onde não houve projecto life nenhum, a população de coelhos e lince também aumentou substancialmente."

Ao fazer umas pesquisas pela net encontrei isto:

PROYECTO LIFE PARA EL LINCE Y OTRAS ESPECIES EN CASTILLA-LA MANCHA
http://www.quercus.es/noticia/3352/Avances/proyecto-life-lince-otras-especies-castillala-mancha.html

e isto:

Proyecto LIFE07/NAT/E/000742 “Conservación de especies prioritarias del monte mediterráneo en Castilla-La mancha”.
http://www.priorimancha.es/proyectolife.html

Por aquilo que consigo perceber, há um projecto LIFE a decorrer em Castilla la Mancha desde 2007 direccionado ao Coelho e aos seus principais predadores (incluindo o Lince).

Gonçalo Elias

Henrique Pereira dos Santos disse...

Gonçalo,
Como notas no fim, esses projectos são recentes e muito posteriores à evidência da presença e recuperação do lince.
henrique pereira dos santos

G.E. disse...

Henrique,

Não digo que a recuperação não fosse anterior ao life, no entanto uma coisa é dizer que a recuperação começou antes dos projectos life (podendo argumentar-se, a partir daí, que o efeito benéfico dos projectos life é questionável) e outra é afirmar que "não houve projecto life nenhum" (o que não corresponde à realidade e pode transmitir a ideia errada de que nada está a ser feito naquela região em matéria de acções de conservação dirigida ao lince).

Além disso, convém lembrar que muito antes do projecto LIFE citado já havia sido aprovado, pelo Decreto 276/2003, de 9 de septiembre, o "Plan de recuperación del lince ibérico en Castilla La Mancha", que tinha, entre outros objectivos, o fomento das populações de coelho-bravo.

http://www.jccm.es/contenidos/portal/ccurl/832/501/linceiberico.pdf

Será que se pode realmente afirmar com segurança que não existe qualquer relação entre o aumento das populações de linces naquela região e os projectos de conservação ali desenvolvidos?

Henrique Pereira dos Santos disse...

Gonçalo,
A afirmação tem um contexto. É no quadro de uma discussão em que há quem defenda que a recuperação do lince decorre das políticas de conservação e eu que defendo que a recuperação do coelho é o driver da recuperação do lince, independentemente das acções de conservação.
Nesse contexto, a única coisa que quiz foi explicar que a recuperação se deu independentemente de haver ou não projectos de conservação aplicado.
A afirmação em si é pouco rigorosa? Sim, é, mas incomparavelmente menos rigorosa que a afirmação, sem qualquer base empírica, de que a população de coelho recuperou por causa das políticas de conservação (sendo que o dinheiro dos life's apenas marginalmente foi gasto em gestão de habitats e populações, como toda a gente sabe).
De qualquer maneira por mim podem continuar a dizer que a população de lince recuperou a uma taxa de 10% ao ano por causa dos LIFE's. E se quiserem que eu concorde, também concordo.
E no entanto, a natureza move-se independentemente do que quer que digamos sobre o assunto.
henrique pereira dos santos
PS faz as contas ao que representa por hectare o investimento feito e vais rapidamente perceber que é uma gota de água no oceano das transformações da paisagem, quer naturais, quer induzidas pela economia.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Já agora, nunca vi nenhum lince a pôr-se a ter mais filhos por ter lido no diário do reino que tinha sido aprovado um plano para o proteger.
henrique pereira dos santos

G.E. disse...

Henrique,

Insisto neste ponto: eu não estou a defender os lifes e muito menos a forma como os recursos disponíveis foram aplicados. Aliás, nem sequer conheço esses projectos o suficiente para me poder pronunciar sobre eles, e não fiz qualquer consideração sobre isso. E tambémn não faço a mais pequena ideia dos seus efeitos (positivos ou negativos) e do que teria acontecido se não houvesse projectos.

Apenas pretendi salientar que, contrariamente ao que escreveste no teu post, existem realmente projectos de conservação em curso nesta zona desde 2003 (indiquei quais, com os respectivos links). E fi-lo porque, quem lesse as tuas afirmações no contexto em que foram produzidas, poderia ficar com a ideia - errada - de que a recuperação dos coelhos e dos linces podia com toda a certeza acontecer por obra e graça da mãe natureza sem quaisquer projectos de conservação. A partir do momento em que há projectos a decorrer desde 2003 e que a recuperação do lince se dá em paralelo com esses projectos, deixa de haver certezas quanto a isso, há apenas suposições...

Henrique Pereira dos Santos disse...

Gonçalo,
Então sejamos rigorosos: o plano de 2003 não é life nenhum é um plano de acção de que não sabes o conteúdo.
Mas mesmo que o conteúdo e dimensão fossem homéricas, um plano aprovado em 2003 não tem efeitos imediatos na conservação do lince (é da natureza das coisas e penso que nisso estaremos de acordo), sendo que há literatura muito clara sobre os censos com trabalho de campo de 2006 que demonstram uma trajectória de claro aumento de lince.
Se quiseres insistir no paralelismo temporal que estás a fazer por mim sem problema, mas convenhamos que estás a ser muito mais impreciso que eu ao pretenderes que um plano aprovado em 2003 tem efeitos visíveis na população de lince em 2006.
É nesse sentido que uso a expressão de que não há life nenhum, durante um período em que já uma clara evidência de recuperação do lince (o projecto de 2007, sendo posterior a essa evidência, não serve para a discussão).
henrique pereira dos santos