quinta-feira, junho 11, 2009

Um novo uso para o espaço rural?


Laurisilva, Açores (2004). Foto de Miguel B. Araújo

O outro dia fizeram-me a seguinte pergunta por escrito:
"Na Europa, o conceito de santuário natural é quase indissociável da presença humana. O que é urgente fazer para tentar conciliar a protecção ambiental com a presença do Homem?"

Como optaram por não publicar a resposta, aqui fica ela:
É lugar comum afirmar que sem presença humana os ecossistemas Europeus perderiam biodiversidade. Acontece que a biodiversidade é o resultado de 3.5 biliões de anos de evolução. A nossa espécie existe há apenas 200.000 anos, sendo que a agricultura foi inventada à 10.000 anos e chegou à Península Ibérica há cerca de 5.000 anos. Neste contexto, dificilmente se concebe que sem actividades humanas a biodiversidade estaria comprometida.

A questão é que, na Europa, a expansão da agricultura deu origem a ecossistemas empobrecidos. São ecossistemas desprovidos de grandes herbívoros nativos e de predadores de topo. Os primeiros foram substituídos pelo gado e os últimos pelos agricultores. Com a tendência actual de redução da área agrícola a questão que se coloca é o que fazer com estes espaços. O abandono dos campos pode dar lugar a ecossistemas monótonos já que espécies críticas para o funcionamento dos ecossistemas, como os herbívoros, estão ausentes. Mas nada disto é inevitável.

A presença humana pode ser substituída por agentes naturais de transformação da paisagem. O abandono rural pode dar origem a novas funcionalidades no território, designadamente a conservação de processos naturais. Estas espaços teriam uma forte componente recreativa e turística, como acontece noutros lugares onde este tipo de áreas naturais existem.

Do ponto de vista estratégico, a questão é se combatemos o abandono rural, ou aproveitamos esta tendência de despovoamento rural para promover mudanças mais profundas que passariam pela renaturalização de algumas áreas rurais. A primeira estratégia é cara pois implica a manutenção de actividades tradicionais, artificialmente, com fundos públicos. A segunda, é barata pois devolve aos agentes naturais uma parte do protagonismo na gestão do território abrindo, simultaneamente, oportunidades para gerar riqueza através de actividades económicas ligadas ao desfrute de um certo ideal de natureza.

9 comentários:

Spawm disse...

O agricultores como jardineiros para desfrute de "turistas" das cidades,mas que bem...ao que ficou reduzida a importância do mundo rural.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Como sabes já estive mais longe dos teus pontos de vista nesta matéria mas ainda assim acho que te falta discutir o processo de transição de uma situação para outra.
Esse processo é tudo menos simples e isento de riscos.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Caro Spawm,

A ideia não é aproveitar os agricultores para jardinar o campo. A ideia é aproveitar o abandono rural por parte dos agricultores para deixar o campo regenerar-se por si próprio.

Caro Henrique,

A questão que colocas situa-se no "como fazer?" e eu creio que o debate público ainda se situa no "porque fazer?". A questão do como se implementa uma política de "wilderness" é técnica e depois política e não é simples. Mas nada indica que esteja para além do domínio do possível.

Miguel

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Não estou completamente de acordo contigo. Os problemas do como fazer são demasiado importantes, porque há risco real da transição ser insuportável socialmente.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

queres ser mais especifico?

Henrique Pereira dos Santos disse...

A questão prende-se com a forma como evoluem os sistemas que estão há longo tempo a ser moldados por nós.
O abandono não é total, como sabes, nem inclui as vilas e mesmo as aldeias maiores (ou melhor, inclui, mas a velocidade e profundidade muito menor).
O abandono da envolvente implica fogos severos durante muitos anos, antes que as matas atinjam uma maturidade suficiente para controlarem os fogos.
Nessas circunstâncias todo o mundo rural estará sob forte pressão e muitas áreas urbanas também.
As pessoas não aceitam facilmente essa lógica de wilderness tal como a descreves.
Portanto a gestão da transição implica provavelmente usar os dois mecanismos: abandonar nuns sítios e forma mais ou menos dirigida, manter artificialmente noutros o status quo.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

É mais fácil conversar assim. Penso que discutes dois aspectos: a gestão ecológica do territorio pós-abandono e a gestão dos interesses das populações. São questões diferentes.

Quanto à primeira questão, penso que a solução passa por implementar uma gestão por etapas. Em primeiro lugar é necessário re-introduzir populações de herbivoros nativos e possivelmente predadores naturais. Nessa fase será necessário fazer alguma gestão do fogo tendo em vista um progressivo abandono desta actividade. Se as áreas forem suficientemente grandes (mais do que 10.000 ha) pode-se chegar a um ponto em que a intervenção humana será perto de zero. Estamos a falar de horizontes temporais, consoante o local, de 30-60 anos.

Quanto ao segundo aspecto, há que ver caso a caso. Obviamente que não se fala de desalojar pessoas à força mas sim de aproveitar tendências demográficas históricas. Uma aluna minha de doutoramento (Ana Luisa Gomes) fez uma análise preliminar do território em que tentou encontrar áreas candidatas à implementação de áreas de "wilderness". Estas áreas existem. Pode-se discutir um caso ou outro (e os detalhes sobre os seus contornos) mas existe em Portugal área suficiente para implementar mais de um par áreas de "wilderness". Bastaria vontade política, alguns recursos financeiros, e um modelo de gestão financeira que se revelassse rentável no médio e longo prazo.

A vontade política é algo que não controlamos e que varia consoante as pessoas que estão no governo. Os recursos financeiros dependeriam de uma reviravolta na política de financiamento Europeu. Nada que seja impossível mas nada que esteja eminente. E quanto ao modelo de gestão basta estudar exemplos nos EUA, África e norte da Europa para concluir que não é um modelo descabelado. Se me derem 10.000 ha para gerir demonstro que se pode fazer dinheiro vendendo "wilderness" no sul da Europa.

Henrique Pereira dos Santos disse...

No primeiro fogo cortar-te-iam o financiamento.
10 000 hectares é muito pouco (penso que inicialmente falavas de 100 000) e, nas nossas circunstâncias, normalmente muito difícil de encontrar.
No PNPG, sob a bandeira Pan-Parks há uma experiência desse tipo sobre a qual tenho as maiores dúvidas.
Preferia fazer a experiência no Douro Internacional mas a gestão Pan Parks não aceitou paisagens tão lineares.
O Mediterrâneo não tem o mesmo tipo de marca humana que as regiões que citas, razão pela qual até hoje a lógica pan parks só formalmente entrou no Mediterrâneo.
O que quis dizer é que o saber como é, neste caso, tão importante como o saber o que se pretende.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Henrique,

Tens razão: eram 100,000 e não 10,000 e foram os 100,000 que nortearam a procura de áreas de wilderness na tese da Ana Luisa Gomes.

"No primeiro fogo cortar-te-iam o financiamento."

Esta não é nem uma discussão do "se fazer" nem do "como fazer". Isto é pequena política que, sendo importante, está a léguas do nível de debate deste assunto que ainda é muito mais fundamental. Aliás esse dilema é velho e gerou debates intensos em locais como Yellowstone e Kruger pelo que o mais provável seria ver uma repetição de querelas do passado mais do que o corte de financiamento curto e simples.

"No PNPG, sob a bandeira Pan-Parks há uma experiência desse tipo sobre a qual tenho as maiores dúvidas."

Queres escrever um pouco mais sobre isto?

"O Mediterrâneo não tem o mesmo tipo de marca humana que as regiões que citas, razão pela qual até hoje a lógica pan parks só formalmente entrou no Mediterrâneo."

Isso é um mito. O que caracteriza o mediterrâneo são ecossistemas com o um antigo e elevado nível de perturbação humana mas esta peturbação em nada difere da perturbação que existe em ecossistemas com presença de grandes ungulados. Se passeares por areas de wilderness nos grandes parques Africanos, que não possuem pessoas, encontras níveis de perturbação igual ou superior ao que encontras no mediterrâneo (obviamente não estamos a falar do turismo mas da agricultura e pastoricia, certo?).

O caso do Mediterrâneo é o caso de um mito que é difícil de descontstruir por ter sido repetido tantas vezes.

"O que quis dizer é que o saber como é, neste caso, tão importante como o saber o que se pretende."

Obviamente que é importante mas as mudanças de paradigma fazem-se primeiro porque as pessoas acreditam nas ideias. Depois vem o debate mais dificil de como as implementar. Mas como disse antes, ainda estamos na primeira fase. A segunda viria se a ideia de criar áreas de wilderness entrasse no léxico das prioridades ambientais Europeu. Facto que só timidamente se começa a verificar.