quinta-feira, julho 16, 2009

O Estado, a informação e a biodiversidade


Mantive uma conversa de surdos com o Miguel Araújo em posts e comentários anteriores já que eu estava a pretender discutir o que devo e posso fazer eu agora no que diz respeito à produção e sistematização da informação sobre biodiversidade e o Miguel pretendia discutir o que o Estado deve fazer.
A razão pela qual não quis seguir o Miguel no caminho a dar à discussão é simplesmente porque me parece razoavelmente estéril discutir o que terceiros devem fazer, onde provavelmente estaremos todos mais ou menos de acordo.
Mas porque sistematicamente nessa conversa senti que a minha posição não estava a ser correctamente explicitada no que diz respeito à responsabilização do Estado resolvi fazer este post sobre o que penso ser a sua responsabilidade na produção e gestão de informação sobre biodiversidade.
A política de conservação da natureza é política necessariamente pública e suportada em recursos públicos. Do meu ponto de vista deveria fazer parte das funções básicas do Estado, como a diplomacia, as forças armadas ou a segurança pública.
A política de conservação da natureza é uma política de conhecimento intensivo.
Resulta destas duas afirmações que evidentemente reconheço a responsabilidade do Estado na produção e sistematização da informação de biodiversidade.
Tornado isto claro vejamos um detalhe que inquina a discussão.
Há uma manifesta confusão entre as responsabilidades do Estado e as responsabilidades do ICNB. Quase sempre os produtores profissionais de informação de biodiversidade, nas sua larguíssima maioria pagos pelo erário público, descartam as responsabilidades próprias (enquanto agentes do Estado, não estou ainda a falar nas suas responsabilidades privadas e de cidadania), descartam as responsabilidades da academia, dominantemente pública neste sector, descartam as responsabilidades da FCT (ou de quem a substitua na gestão da política científica), descartam as responsabilidades dos museus com componentes de história natural e dos jardins botânicos, descartam as responsabilidades do fisco no tratamento dos assuntos de biodiversidade, descartam as responsabilidades do Ministério da Agricultura na gestão dos dinheiros para o mundo rural, nos quais se incluam grandes valores para a produção de informação descartam as responsabilidades das autoridades de tutela do ordenamento do território e do planeamento e por aí fora, concentrando-se na crítica fácil ao ICNB como responsável pela ausência de informação de biodiversidade no País.
Do meu ponto de vista, e dizendo desde já que o ICNB tem com certeza responsabilidades e muitas, podendo com os mesmos recursos fazer muito melhor, esta desresponsabilização do Estado no seu todo e hiperresponsabilização do ICNB serve a todos menos ao ICNB e esquece um princípio fundamental: nunca se deve esperar de uma pessoa (neste caso, de uma instituição) aquilo que ela não pode dar.
E nunca será expectável que o ICNB possa responsabilizar-se por tudo o que é preciso que o Estado faça nesta matéria. Daqui resulta que não existe pressão para resolver o problema onde deveria e existe uma pressão de tal forma impossível de satisfazer sobre o ICNB que se torna completamente ineficaz.
A política de conservação é uma política transversal e não pode ser remetida para uma instituição que é um mero executor de opções políticas de terceiros com legitimidade para fazer opções políticas. O ICNB não é um produtor de políticas.
Enquanto o Estado falhar nesta matéria é o primeiro ministro e a assembeia da república que falham, não é, no essencial, o ICNB.
Apenas para dar um exemplo que todos os que trabalham na matéria conhecem de certeza por já terem sido confrontados com ele: em Portugal a informação é informalmente reconhecida como propriedade do investigador que a produz, que a esconde, escamoteia ou vende se quiser (e muitas vezes não quer, é certo).
Ora para mim é de meridiana clareza a ideia de que a informação produzida com dinheiros públicos é pública, sem mais nada, nem sequer pedidos de autorização para a usar, que a identificação da sua origem.
Quase toda a informação estruturada que é produzida em matéria de biodiversidade é-o com recurso, total ou parcial, a dinheiros públicos, mas simplesmente isso não a torna imediatamente acessível ao público.
É isto uma matéria que caiba ao ICNB resolver? Claro que não (há uma pequena parte que lhe cabe resolver, mas é quase marginal).
Resumindo, estou inteiramente de acordo que o Estado deveria criar um sistema central, aberto e participado de registo de dados biológicos, dou de barato que poderia ser o SIPNAT, mas isso implica uma orientação política forte no Governo que implique todo o Estado e não apenas o ICNB.
Talvez valha a pena lembrar aqui, como exemplo das opções políticas do actual Governo, que no novo regime jurídico da conservação não há quase nada de concreto sobre o financiamento da política de conservação e o pouco que há ou é vago ou está ao nível da inacreditável opção de considerar as medidas compensatórias que projectos que têm efeitos negativos na biodiversidade como uma fonte de financiamento da política de conservação.
Resumindo, este Governo está-se nas tintas para a conservação, não porque parte dos seus membros não achem isso importante, mas porque o primeiro ministro tem um forte partis-pris contra a conservação.
Mas nada na discussão política que vai havendo indica que isso se altere com outro Governo qualquer pela simples razão de que a discussão política sobre conservação, quando existe e tem peso político, pouco mais além vai que a discussão sobre o ICNB e coisas que tal.
Isto é o que penso e, consequentemente, pergunto-me o que se pode fazer em concreto pela produção e sistematização de informação?
Uma coisa é continuar, como nos últimos trinta anos, à espera que a pressão política dê resultados palpáveis, discutindo modelos, o que está escrito nos diplomas legais sobre competências e responsabilidades, as pessoas certas e erradas nos lugares do Estado e essa cangalhada toda que todos vamos fazendo. E muito bem, também dou para esse peditório de exigir aos outros.
Outra, que em Portugal sistematicamente se desvaloriza, é esquecer o que não posso fazer porque o Estado é incompetente, malandro, ignorante e essas coisas todas, e concentrar-me no que posso fazer autonomamente, à semelhança do que se faz pelo mundo fora.
Claro que esta segunda coisa não resolve o assunto nem nunca vai criar os sistema de registo de dados biológicos de que o País precisa.
Mas, meanwhile, provavelmente estaremos um bocadinho melhor com o que faremos a partir dos recursos que é possível mobilizar fora do Estado.
E de caminho faremos com certeza uma pressão mais eficaz sobre o Estado ao demonstrar o que se pode fazer quando se quer.
É isto desresponsabilizar o Estado?
Eu acho que não.
henrique pereira dos santos

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