segunda-feira, julho 06, 2009

O fogo e os seus mistérios

Um claro exemplo da forma como os sistemas estão a evoluir com o actual padrão de fogo, dos vales para as encostas, numa das zonas do país mais complicadas deste ponto de vista

A propósito do post sobre invertebrados e o fogo José Carlos Carvalho dá indicações sobre referências das suas publicações que lhe permitem afirmar: "Ao trabalhar com coelho-bravo, no Norte, pude constatar que um dos problemas é, precisamente, o fogo. Todos os anos são queimadas extensas áreas de mato alto que servem de abrigo ao bicho. Ora o coelho é o suporte trófico do bufo-real, águia-real (ainda existia no tempo que andei por lá), gato-bravo, etc. etc. Por vezes, tudo o que resta ao bicho são as fendas nas rochas onde consegue estabelecer pequenos núcleos. Bem, o resto é história... (em jeito de nota, nas zonas mediterrânicas, os fogos controlados até podem ser benéficos...)"

Confesso que não encontrei as quatro referências na net (apenas os seus resumos) mas das duas primeiras (primeira referência segunda referência) pude ver os textos completos e quer nestes abstracts, quer nos textos completos, nada permite a afirmação acima, parece-me a mim.

No fundo José Carlos Carvalho faz um raciocínio frequente e lógico mas, tanto quanto me parece, errado. E é por ter estas três características, ser frequente, lógico e errado que faço este post a explicar por que me parece errado.

José Carlos Carvalho conclui, não vou discutir se bem se mal porque é num dos tais textos de que só consegui ler o resumo, que há uma relação estatística entre a existência de matos altos e a presença de coelho. Note-se, apenas a presença e não a abundância.

Partindo desta conclusão, conclui que se os fogos queimam os matos altos, então são prejudiciais ao coelho. Parece lógico, e é. Mas lógico não quer dizer verdadeiro.

Para verificar a correcção da conclusão é preciso verificar a correcção dos pressupostos.

Discutamos primeiro a questão dos matos altos. O facto de haver indícios mais frequentes de coelho nos matos altos não significa necessariamente maior importância para a conservação do coelho. Se numa determinada área existe abundante área de alimentação aberta e poucos sítios de abrigo, é natural que esses poucos sítios de abrigo sejam intensamente usados, ao passo que as extensas áreas de alimentação terão um uso mais disperso, sendo por isso mais difícil encontrar sinais dos coelhos. Pode acontecer que ao gerir o habitat no sentido de aumentar a disponibilidade de abrigo (à custa da área de alimentação) eu venha um dia a encontrar mais sinais de coelhos nas áreas abertas que nas áreas de matos altos. É o problema das correlações estatísticas sem verificação das relações de causa/ efeito.

Segundo pressuposto do raciocínio: os fogos diminuem as áreas de mato alto. Este pressuposto não foi analisado nos trabalhos em causa mas parece uma evidência. Mas simplesmente não é inteiramente verdade, dependendo da frequência e severidade dos fogos. Em fogos muito extensos há, com muita frequência, áreas não ardidas ou sobre as quais o fogo passa como gato sobre brasas. Mas sobretudo são muito poucos, actualmente, os sítios em Portugal onde o fogo tem frequências incompatíveis com a existência de matos que forneçam abrigo a coelhos. Mesmo que uma área fique temporariamente sem grande abrigos, há uma recuperação notável nos dois três anos seguintes, o que invalida este pressuposto quando se tem em atenção a dinâmica dos sistemas.

Daí que a perturbação pelo fogo tenha uma importância marginal face aos outros factores que influenciam a conservação das populações de coelho, como sejam as doenças, à cabeça de todos, e as alterações estruturais de habitats provocadas pelo abandono agrícola (de que aliás os fogos são um sintoma, mas um sintoma que com efeito contrário aos efeitos do abandono agrícola na dinâmica do sistema).

Ora é esta "contradição" entre os efeitos imediato e mediato do fogo que leva a muitas e muitas afirmações como a de cima (aliás tal como uma outra afirmação, no comentário seguinte, que afirma que o fogo transforma zonas de carvalhal em zonas de mato muito rasteiro, o que está muito longe de ser o padrão habitual que se verifica) que faz com que persista em muitos académicos, que estudam questões marginais aos efeitos do fogo mas não directamente a dinâmica associada aos fogos, uma ideia errada, embora aparentemente lógica, do que está a acontecer no nosso país nesta matéria.

henrique pereira dos santos

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