quarta-feira, janeiro 19, 2011

A qualidade na discussão


"Ora diga lá, a Carris tem ou não razão em fechar o comboio para Beja? Diz aqui que o comboio tem uma média de três passageiros.
Óh Sr. António, os transportes públicos não são feitos para dar lucro".
Um pedaço da conversa enquanto eu comprava o pão.
Devo dizer que é um bom resumo das discussões sobre transportes, sustentabilidade, comboios e fechos de linhas que tenho ouvido há uns dias. E tem mais ou menos a qualidade da discussão na sofisticada blogosfera.
Eu gosto de me levantar cedo, a Rosarinho desde as cinco que está no quiosque mas eu só mais tarde passo por lá (com excepção dos dias em que vou apanhar o comboio das seis para o Porto) a comprar o jornal porque gosto de o ler enquanto bebo um café. Ora para não ter de esperar muito que a porta do café abra (há outro já aberto na esquina em frente, mas não gosto muito) só saio de casa normalmente depois da seis, cruzo-me com as últimas prostitutas da rua, que vou cumprimentando de nos cruzarmos tantas vezes, um ou outro taxista que está a pegar ou a sair, um ou outro trabalhador (mais trabalhadoras que trabalhadores, para ser exacto, mesmo descontando as prostitutas) e vou cumprimentando aqui e ali porque somos quase sempre os mesmos.
E vou ouvindo as conversas no quiosque, enquanto vejo as capas, no café onde demoro mais que a maioria àquela hora, porque leio o jornal de fio a pavio, na mercearia onde compro o pão, enfim, aqui e ali.
Nesta altura do ano ainda a luz não é muita e tenho pena de não ser bom fotógrafo para me pôr a fotografar os vultos que saem dos barcos, e os vejo atravessar o Terreiro do Paço de lés a lés, numa longa fila, quando vou apanhar o comboio a Santa Apolónia. Calculo que todos eles pensem, como eu, que não se pode esperar muito da produtividade de um país cuja capital tem um metro que funciona até à uma da manhã, mas que só começa às seis e meia, esquecendo-se dos milhares de trabalhadores que entram antes das sete da manhã, a maior parte dos quais evidentemente utilizadores de transportes públicos, se tiverem essa alternativa.
Ora quer as confusões e lapsos (a carris a ter comboios para Beja é evidentemente um lapso) de quem diz que o comboio vai acabar para Beja (não é verdade, a CP reformulou a oferta, aumentou os comboios directos para Évora e adaptou o serviço para Beja quer à procura, quer à capacidade técnica da linha, mudando os passageiros de comboio), quer de quem se recusa a discutir o número de passageiros debaixo da bandeira do serviço social, imune ao lucro (pensamos nós, que ainda acreditamos em almoços grátis) são o espelho da discussão supostamente mais sofisticada que a da madrugada da minha rua.
É por isso que se confundem na discussão os fechos da linha do Tua e da Lousã, que são coisas bem diferentes.
É por isso que quando se diz que bastava um bocado mais de investimento num sítio, se recusa a discussão do que faria esse investimento noutro lado qualquer.
É por isso que pessoas pertencentes à elite do país (suponho que a academia não pode deixar dse se incluir nas elites) dizem disparates do tamanho do mundo apenas para defender a sua côr partidária numa decisão mais que discutível.
E no entanto não custa muito mais dinheiro simplesmente procurar informação, organizá-la e discutir opções a partir daí.
Lembro-me sempre numa reunião de contencioso comunitário um jovem assessor de um ministro dizer com um ar assertivo para uma velha raposa do direito comunitário que determinada decisão resultava de uma opção política muito clara do governo de Portugal. Ouvindo em resposta um displicente "só há opções políticas dentro dos limites da lei, fora desses limites o que há é apenas ilegalidade".
Nós não acreditamos muito nisso.
henrique pereira dos santos

6 comentários:

Luís Lavoura disse...

Qual é, exatamente, o "disparate do tamanho do mundo" que o João Pinto e Castro escreveu e que o Henrique tem em vista?

Nuno disse...

As analogias entre Tua e Lousã ninguém as faz a não ser para desacreditar os serviços de transportes públicos em zonas rurais, como o autor do post medíocre que referiu. Se existirem semelhanças estão apenas ao nível do exemplo de gestão medíocre, sendo que um serviço (sobretudo) suburbano de uma capital de distrito e uma linha com potencial turístico numa zona rural pouco têm em comum, mesmo em relação a montantes ou modelos de negócio e empresas de gestão envolvidas.

As obras "de um ano" para as linhas do Alentejo são bem vindas, estranhas são as obras de um ano para o Tâmega e Corgo ( e Nine, e Caíde e Oeste, etc) que teimam em não dar notícias.

É pragmático pesar as melhorias face às alterações, a ver:

-Ganharam-se mais duas ligações a Lisboa para Évora e Beja
- Perdeu-se conforto (e provavelmente rapidez) ao tirarem-se os IC
- Utentes de Beja agora fazem transbordo, o que é bizarro após uma melhoria das linhas

Conclusão: Todas as alterações introduzidas são boas (ou menos más) apenas se houver aumento de rapidez, que me parece estranho com material circulante mais antigo e mais transbordos mas estou disposto a aguardar até Maio.

Mas julgo não ser frívolo perguntar como é que se fazem obras para acrescentar transbordos, tempo de viagem e perda de conforto?

Henrique Pereira dos Santos disse...

Luís,
A ideia de que a ideologia ruralista comanda a ocupação do território em Portugal (fora as outras menores),
Nuno,
Para Évora melhora tudo, porque o que passa é a haver mais intercidades, com o mesmo material circulante (provavelmente também porque deixa de ir a Beja puxado por uma máquina).
henrique pereira dos santos

Nuno disse...

Henrique,

Para Évora deixa de existir serviço Intercidades propriamente dito- pelo que percebi é material circulante dos anos 70 mais apropriado para linhas suburbanas. Não me choca se o conforto for aceitável e se forem mais leves que os ICs anteriores, podendo ir mais rápido, que, mantenho, se não acontecer então estas obras foram um fiasco e (mais um) monumental e caro erro de gestão.

A electrificação é muito positiva mas perdeu-se uma grande oportunidade para a levar até Beja, eliminando um transbordo.
Bastava uma micro fracção do valor que a cambada estoirou num aeroporto para a cidade...
Mais uma vez fez-se tudo a meio gás e sem convicção.

Li agora os seus comentários no post referido e tem argumentos que me parecem inquestionáveis e que nunca me tinham ocorrido em relação aos serviços pouco reconhecidos de gestão de paisagem providenciados pela população rural.

Luís Lavoura disse...

O Nuno parece pensar que os Intercidades da CP são muito confortáveis.

Eu já vivo neste mundo, provavelmnete, há bastante mais tempo do que o Nuno, e lembro-me bem dos antigos comboios da CP. Eram bem mais confortáveis do que os Intercidades. Tinham mais espaço para as pernas. Nos Intercidades da CP anda-se como sardinha em lata, num avião barato.

Entre um Intercidades da CP (combóio modelo Corail francês) e um combóio da CP dos anos 70, prefiro sem dúvida o último.

Nuno disse...

@Luís Lavoura,

Eu não disse quais eram mais confortáveis, só mencionei que material mais antigo tende a ter outros padrões e que o que vai circular não são IC (cujo conforto até varia por zona).
Só vendo o que vai estar a circular é que posso comparar, até lá ninguém sabe, apesar do artigo falar em desconforto.
Como o conforto é subjectivo e já que menciona uma comparação etária, suponho que as necessidades aumentem com a idade, por isso é mesmo um factor relevante.

Continua a preferir as automotoras dos anos 70 se forem mais lentas que o IC?
Porque é esse o meu argumento, não sei se consegui exprimir-me bem:

"Não me choca se o conforto for aceitável, (...)podendo ir mais rápido"

O artigo falha esta questão fulcral, deliberadamente por parte da CP ou por azelhice do jornalista.