quarta-feira, dezembro 07, 2011

Ik zie ik zie wat jij niet ziet

Há uma brincadeira infantil na Holanda com o nome do título, que quer dizer mais ou menos "eu vejo eu vejo o que tu não vês", na qual uma criança olha em volta e nomeia uma característica de um objeto em que a outra terá de adivinhar o que está a ver. É giro, divertido e treina um olhar atento das crianças sobre o que as rodeia. Mas é um exercício interessante também para adultos, sobretudo quando estamos a olhar para uma paisagem. E muito revelador da perceção dessa mesma paisagem e revela muito sobre o quadro ético que condiciona essa perceção. Roubei a imagem acima da revista Fugas do jornal o Público da semana passada e é evidente que se trata do Douro vinhateiro, que por mera coincidência veio à discussão muito recentemente por causa da barragem de Tua. É curioso como o orgulho nacional é impulsionado sobretudo quando alguém de fora vem dizer que algo é muito valioso cá. Nada como um estrangeiro dizer-nos que o vale do Douro é muito bonito, o fado também, a comida excelente e do tempo então nem se fala. Já sabíamos, mas agora "é oficial"! Mas estou a desviar. Portanto vamos lá brincar: eu vejo eu vejo ... socalcos novinhos em folha e ripagens de alto a baixo! Agora adivinhem vocês o que estou a ver (na primeira vez não convém ser muito difícil, para não desencorajar). Henk Feith

19 comentários:

Luís Lavoura disse...

O Henk vê um rio completamente alterado por uma barragem que foi construída mais a jusante.

Henk Feith disse...

Olá Luís,

Boa, gostei. Nunca pensaria isso ao olhar para a imagem. Mas com certeza, compreendo que o Luís vê isso.

Henk

Henk Feith disse...

Fiquei a pensar: Luís, é o rio a única coisa que vês completamente alterada?

Será que há na imagem qualquer objeto que não seja completamente alterado?

Henk

Anónimo disse...

Os socalcos são obra do homem. Quem agora condena as barragens, condenaria a construção de socalcos por mudarem a paisagem natural

Anónimo disse...

"O Henk vê um rio completamente alterado por uma barragem que foi construída mais a jusante. "

Não, não foi. As barragens do troço português do Douro são todas de fio-de-água com uma capacidade de armazenamento de água de apenas umas horas de caudal médio do rio. O «completamente alterado» resumem-se a pouquíssimos metros (inferior a uma dezena) de nível máximo da água - excepto mesmo junto a cada uma das barragens onde o paredão naturalmente alterou a paisagem significativamente.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Grande post, Henk.
Eu calculo o que vejas, mas vou esperar para confirmar, porque para ser bom nessa brincadeira é tão importante treinar a capacidade de observar o que está à volta, como treinar a capacidade de conhecer o outro participante na brincadeira.
henrique pereira dos santos

G.E. disse...

Eu vejo uma linha férrea muito próxima do plano de água, na margem direita da imagem (que é na verdade a margem esquerda, já que o rio corre de lá para cá).

É a linha férrea conhecida por "linha do Douro".

Sempre que percorri a linha do Douro chamou-me a atenção este aspecto: as cotas das várias barragens que integram a chamada "cascata do Douro" em território nacional, nomeadamente Pocinho, Valeira, Régua e Carrapatelo (a de Crestuma-Lever não releva para o caso, pois aí a linha não corre junto ao rio) são todas muito posteriores à construção da linha e em todas elas houve o cuidado de planear o empreendimento de modo a que a linha não ficasse submersa.

Contudo, procurou-se aproveitar o vale (abaixo da linha) até ao limite e este facto é bem visível quando se passa, de comboio, pelas barragens da Régua e da Valeira: logo a montante dos paredões respectivos, a linha segue quase tangente ao plano de água. Ou seja, foi possível conciliar a construção de barragens com a preservação da linha (e, por arrasto, das vinhas, que nessa altura não eram ainda classificadas pela Unesco, embora já fossem Região Demarcada). Não estou a desvalorizar as vinhas mas quem observar o traçado da linha nos pontos em que ela quase toca o rio percebe facilmente que foi a linha o factor que efectivamente mais condicionou a decisão sobre as cotas.

E apesar das aparentes limitações impostas sobretudo pela existência de uma linha férrea, isso não obstou a que essas 4 barragens viessem a figurar entre as 10 mais produtivas de Portugal.

A foto que colocaste evidencia a proximidade da linha férrea com o plano de água, pois o local da foto é um pouco a montante da barragem do Pocinho, numa zona onde a via férrea se encontra desactivada há mais de 20 anos.


Dito isto, falemos sobre a barragem do Tua: a capacidade instalada prevista é de 251 MW (fonte: www.edp.pt), o que não é muito mais do que a capacidade de cada uma das barragens da Valeira (216), do Carrapatelo (210) ou do Pocinho (186).

A minha questão é esta: se nas décadas de 1970 e 1980 foi possível construir no Douro quatro barragens de grande capacidade produtiva sem afogar a linha férrea nem as vinhas circundantes, porque é que, trinta anos depois, uma quinta barragem nesta região, que nem sequer tem uma capacidade instalada extraordinariamente elevada (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, no Alto Lindoso, que tem 630 MW), consegue ser tão destruidora em termos dos valores naturais, paisagísticos, culturais e sociais?

Henk não faço ideia se era à linha que te referias, mas aproveitei para deixar aqui esta reflexão :)

1 abraço,
Gonçalo E.

Henrique Miguel Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Henrique Miguel Pereira disse...

Gonçalo,

Pois o problema é que a maioria dos pontos com grande potencial de aproveitamento hidroelétrico estão já tomados. Começa-se sempre por esses, e Portugal é um país já vai construindo barragens há muitas décadas. As localizações que restam são de uma forma geral menos interessantes e exigem eventualmente maiores impactos.

Abraço,
Henrique Miguel Pereira

G.E. disse...

Henrique,

Entendo o raciocínio, mas tenho alguma dificuldade em aceitar que a maiores impactos não correspondam, também, maiores benefícios (ao invés de benefícios marginais, como me parece ser o caso).

Uma coisa é sacrificar muito para obter muito em troca; outra coisa é sacrificar muito para obter um pequeno ganho. O rácio entre benefício e perda é claramente mais desfavorável no caso em apreço, por comparação com os casos que anteriormente enunciei. Ou seja, em termos de "eficiência" a curva temporal é descendente.

Claro que se poderá defender que neste momento não há alternativas e que temos mesmo de sacrificar mais para obter o tal ganho marginal, absolutamente necessário.

O problema é que aquilo que hoje parece ser suficiente, amanhã já não o será. Porque as necessidades de amanhã serão maiores que as de hoje. E as do dia seguinte maiores ainda. A questão (a que nunca ninguém responde) é sempre a mesma: até onde estamos dispostos a ir?

1 abraço,
Gonçalo

Henrique Pereira dos Santos disse...

Gonçalo,
Há uma certa confusão sobre a utilidade de algumas barragens. As barragens do Douro são a fio de água, produzindo muito com caudais elevados. A utilidade dessas barragens é essencialmente a produção mais ou menos contínua em função do caudal do rio. Outras barragens tem albufeiras de armazenamento. A utilidade dessas barragens é produzir quando é preciso. Produzem menos horas, muitas vezes produzem menos energia globalmente, mas têm a grande valência de produzir quando há procura. No caso específico do Douro há uma combinação destes tipos de barragens que vale mais que a soma das partes. Se tiveres barragens de acumulação de água (energia potencial) a montante de outras a fio de água, a sua utilidade é tanto a de produzirem por si mesmas como a de reforçarem caudais do rio em alturas de maior necessidade, aumentando a produção das barragens de fio de água. Nesse sentido foz côa era mais interessante que o Sabor (cinco barragens a juzante, acho eu), e o Sabor (quatro) mais interessante que foz tua (duas).
Não estou a discutir o fundo da questão nem a tua reflexão mas apenas a fazer notar que fazer a discussão apenas com base no que cada barragem produz induz em erros de análise.
henrique pereira dos santos

Luís Lavoura disse...

Gonçalo Elias, tal como já foi explicado inúmeras vezes, as barragens nos afluentes do Douro não se destinam a produzir muita energia, mas sim a acumular água que possa produzir energia quando ela é precisa. Ou seja, destinam-se a fazer o papel das baterias numa instalação de paineis solares fotovoltaicos - as baterias não produzem energia, mas são cruciais para que a instalação possa ter uma utilidade total.

Luís Lavoura disse...

Anónimo,
embora as barragens do Douro sejam de fio de água, alteraram completamente a fisionomia do rio, que agora é um rio de águas paradas e planas, completamente diferente do rio que era navegado pelos barcos rabelos, que era turbulento e com troços de águas rápidas. Em particular, a barragem da Valeira foi construída sobre o antigo "cachão da Valeira", que era, julgo, um ponto estreito do rio em que ele era muito rápido. (O cachão da Valeira é também um ponto histórico, pois foi o ponto em que o marquês de Pombal estabeleceu o limite montante da região demarcada de produção de vinho do Porto - só muito mais recentemente é que se começou a plantar vinhas para montante daí.)

Paulo Araújo disse...

Como contributo para o passatempo proposto por Henk Feith, eis o que (também) vejo nesta imagem: a erradicação quase total da vegetação espontânea na zona do país onde a guerra à biodiversidade é mais encarniçada. A expansão descontrolada das vinhas (fala-se agora em convertê-las noutras coisas) não deixou espaço para outras considerações, naquela que já foi uma das regiões floristicamente mais ricas do país. E ainda há o uso desvairado dos químicos, não só nas vinhas como nas bermas das estradas.

Eu gosto do Douro e gosto (ainda) de visitá-lo, mas faço-o sempre de coração apertado, contabilizando o que se perdeu entre uma visita e outra.

Anónimo disse...

O que eu vejo, é uma paisagem que foi premiada no estrangeiro.
A intervenção humana no relevo natural. Compatível? Neste caso, parece que sim, a avaliar pelos comentários dos estrangeiros...
E na barragem do Tua? O que muda?
A destruição? Ou a inovação?

Anónimo disse...

Boas a todos,

penso que o que o Henk queria brincar era com a questão dos terraços e outras técnicas mais agressivas ( ripagens de alto a baixo)permitidas e "glorificadas" nesta paisagem, com a diabolização das mesmas nos espaços florestais, nomeadamente nos eucaliptais. Para não falar da completa ausência de vegetação na paisagem humanizada, que se fosse numa floresta era condenada. Ou seja, esta diferença de avaliação pelas autoridades e pelo publico em geral, entre a floresta (nomeadamente a intensiva) e a parte agrícola ( vinhas, olival intensivo,etc)
Mas, a brincadeira é engraçada, nomeadamente, com a descoberta de outros pontos de vistas aqui descorridos e donde se podem colocar várias perguntas, nomeadamente comparando a imagem da esquerda e da direita. Qual a paisagem mais bonita: a da esquerda, natural ou a da direita desenhada pelo homem? Qual a que traz mais beneficios económicos para o dono? E para a sociedade?
No tocante às barragens penso que o retorno energético vai ser muito pouco para as perdas ambientais, economicas e sociais que vai criar, donde a única vantagem neste plano que descortino é o das barragens puderem armazenar água em zonas carentes dela, derivado do maior regime de chuvas torrenciais que vamos tendo.

Saudações florestais a todos,

Paulo Maio

Henk Feith disse...

Como disse, a resposta era simples: vejo uma vinha.

Não é por acaso que um "brother in arms" como Paulo Maio adivinha a ideia por trás da brincadeira. O que me veio à cabeça quando vi a imagem foi de termos uma paisagem classificada pelo UNESCO que estaria ilegal se fosse uma plantação florestal. Mas vou ser claro: o que para mim está mal não é a vinha, é a legislação sobre mobilizações do solo. Sou um defensor convicto de socalcos, ou terraços ou banquetas ou seja qual for o nome dado à esta técnica secular de armação do terreno para cultivo.

No entanto, a "brincadeira" revelou, de uma forma surpreendente, que visualmente registamos é o que estamos preparados para registar. Foi muito interessante saber que, para a mesma imagem, há quem vê (problemas com) barragens, linhas de ferro como condicionante à construção das mesmas e a ausência de vegetação.

Gostei da brincadeira, por me ter lembrado que vemos somente uma parte da nossa realidade, incomparavelmente mais complexa que a nossa reconstrução mental dela.

Henk Feith

Henrique Pereira dos Santos disse...

Henk,
Está visto que deverias arranjar maneira de participares num dos seminários do Carl Steinitz sobre percepção da paisagem (bem como do que as pessoas acham bom ou mau). A presença de água normalmente faz as pessoas classificarem melhor uma paisagem. Mas numa escala de um a cinco, a mesma fotografia com duas legendas diferentes (lago ou albufeira, mata ou povoamento florestal) é classificada de forma diferente (descida de um nível, nos dois exemplos citados).
A nossa cabeça é uma coisa estranha.
henrique pereira dos santos

Henk Feith disse...

Henrique,

Lembro perfeitamente quando vim pela primeira vez a Portugal, há mais de duas décadas, viajava no verão de autocarro de Algarve para Lisboa e achava aquilo um deserto e seguramente não achava bonito. Aquela paisagem estava muito longe do meu ideal mental da paisagem perfeita. Esse meu ideal foi construído ao longo da minha vida e, na altura, estava muito mais perto de um Redwood National Park ou um Bialowieza do que uns cereais sequíssimos com uns sobreirecos perdidos no meio. Para apreciar o Alentejo tive de corrigir o meu ideal: tive de compreender a paisagem e o seu valor. E tive de compreender que aquela paisagem cumpria a sua função, condição essencial para ser considerada bonita.

Gostos não se discutem? bem pelo contrário: só discutindo desenvolvemos gostos.

Henk Feith