sábado, maio 25, 2013

A ideia perigosa de Darwin


O título deste post é o título de um livro de Daniel Denett, infelizmente prejudicado pelo objectivo único do autor: tentar demonstrar cientificamente a inexistência de Deus. Um programa razoavelmente inútil porque a ciência e a fé estão em planos diferentes e portanto evoluem autonomamente.
Se Denett tivesse maior abertura de espírito e olhasse também para biologia da evolução, tal como hoje muitos dos seus investigadores a praticam, e a confrontasse com a tal ideia de Darwin, provavelmente concluiria que há um grande desfasamento entre o que muitos especialistas dizem da evolução e o que Darwin efectivamente diz.
O que aqui digo não significa nenhum menosprezo por muitos destes especialistas, significa apenas que discordo deles.
Quando Humberto Rosa apresentou o meu primeiro livro, no seu lançamento, fez um elogio muito simpático em geral, mas fez uma crítica concreta ao capítulo dos micróbios por entender que eu falava erradamente de adaptação darwinista em prazos curtos já que a especiação é um processo de milhões de anos.
Discordei na altura, e continuo a discordar, sem que isso afecte minimamente a consideração que tenho por Humberto Rosa (da mesma forma que as minhas críticas ao seu desempenho político também se cingem a isso mesmo).
Já agora um longo intervalo sobre os meus fracassos editoriais. Ao que percebi, no ano passado terei vendido 13 exemplares de "O gosto de Sicó" (penso que comprei 10 dos 13 livros vendidos pelo editor) e vou comprar a edição remanescente na totalidade, por desinteresse do editor em a manter (ou seja, a alternativa é irem os livros para o lixo). E não chegam aos 50 os vendidos no ano passado de "Do tempo e da paisagem", sendo que acho que vou comprar os exemplares que estão na feira do livro porque estão mais baratos que o editor me vende a mim.
Um fracasso editorial, portanto, talvez Humberto Rosa tivesse afinal razão.
Mas hoje li uma notícia que me faz suspeitar de que afinal a coisa é mais complicada.
Quem quiser pode ir ler este post, já velhinho, com uma discussão sobre esta ideia perigosa de Darwin.
E depois de ler tudo, então olhar para esta notícia do Público, demonstrando que em muito poucos anos as baratas se adaptaram às armadilhas com açucar, evitando-as.
Quem diria.
henrique pereira dos santos

19 comentários:

Unknown disse...

Caro Henrique,
Aparentemente devo ter sido eu que comprei os 3 exemplares restantes d'o Gosto de Sicó (1 para mim, 2 para oferecer) e pelo menos 3 "do tempoe da paisagem" (mais uma vez 1 para mim e 2 ou 3 para oferecer, mas a pessoas diferentes do outro).
se estiverem mais baratos na feira do livro do que estavam na fnac, sou bem capaz de comprar mais uns quantos...
ass.gonçalo pinheiro

Henrique Pereira dos Santos disse...

Barraquinha da Principia editora (penso que é o 43, algures do lado direito de quem sobe, logo depois da última praça). Tens de perguntar por eles porque não estão à vista. 3 euros o gosto de sicó e 5 e 20 do tempo e da paisagem. Mas despacha-te que estou a pensar ir comprar todos os que houver deste último (do outro, como disse, vou comprar os restos da edição toda ao editor nesta semana).

Henk Feith disse...

Caro Henrique,

Também o famosíssimo "The Beak of the Finch", do Jonathan Weiner (Pulitzer Prize), aponta para fenómenos evolutivos numa escala temporal de décadas e não de milhões de anos.

Sobre os livros, parece haver aqui algum milagre de multiplicação, porque também comprei duas cópias de Sicó... :-)

Um abraço,

Henk

Henrique Pereira dos Santos disse...

A vantagem da ignorância é que o potencial de aprender coisas novas é enorme. Despertaste-me a curiosidade e agora lá tenho de ir encontrar o livro.
Obridado.
henrique

Carlos Aguiar disse...

Este último século e meio, desde a publicação da "A Origem das Espécies ...", na senda de um caminho iniciado na Renascença, mostra que a ciência e a fé estão só mais ou menos em planos diferentes, e que a religião, pelo menos a Cristã, não evolui autonomamente da ciência. Não preciso ir mais longe: fui educado a acreditar em Adão e Eva e hoje os Génesis são interpretados como uma compilação heterogénea e anacrónica de mitos de proveniência vária. E o espaço para Deus nas sociedades ocidentais ocidentais diminuiu, é senso comum. A tarefa de Daniel Dennet esbarra na fé de muitos, mas faz sentido na mente de outros tantos.
Li os teus livros e dei o meu tempo por bem empregue. Não os tenho, por isso peço-te que me guardes um de cada.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Carlos, escrevi autonomamente, e não independentemente. Não foi por acaso. Não discuto a tarefa de Denett, apenas acho que reduzir a discussão das implicações do que diz Darwin à disucssão da fé me parece muito curto. Eu sei que Denett não faz isso, é bastante mais largo (e interessante) o que me chateia é que nesse livro que dá título ao post ele não se vire para as suas implicações na ciência com a mesma energia. Repara como é contra-intuitiva a ideia de que os sapos podem desenvolver mecanismos de resposta a uma ameaça como as estradas em numa dezena ou duas de gerações. E por isso aparecem especialistas a falar, iron~icamente, no desenvolvimento de mecanismos de resistência ao esmagamento dos carros como se a adaptação fosse lamarckiana.
Está descansado com os livros.
henrique pereira dos santos

Unknown disse...

Só uma nota: o "The Beak of the Finch", do Jonathan Weiner, foi editado pela Caminho, se me recordo be, com o título "O bico do tentilhão".

AC

Miguel B. Araujo disse...

Henrique, Adaptação e especiação não são sinónimos e o tempo da evolução não se mede em anos mas em gerações.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Eu sei a diferença entre adaptação e especiação: a adaptação é um passo, a especiação é um conjunto de passos.
Mas se olhares para as discussões sobre o assunto, incluindo a crítica do Humberto ao capítulo "Dos micróbios", verás que eu falo sempre de adaptações e a crítica que é feita é exactamente a de que a especiação demora muito tempo (o que aliás nem sequer é verdade, exactamente porque o processo se mede em gerações, como dizes e muito bem, e pode haver especiação muito rápida em espécies com uma rápida rotação de gerações).
O teu comentário é uma útil lembrança para os que embora pensando que estão a seguir a contra-intuição de Darwin na verdade se mantêm na intuição lamarckiana.
Já agora, existe uma grande tendência para achar que a especiação, mesmo de organismos complexos como mamíferos, demora milhões de anos.
Ora a verdade é que não é bem assim, como mostram os poucos milhares de anos em que ocorreu domesticação de espécies, nalguns casos com ocorrência provavel de especiação.
O mundo é muito mais instável do que tendemos a admitir e admitir isso tem implicações muito fortes no fundamento das políticas de conservação.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Sinto não ter respondido antes mas o tempo não dá para tudo...

“Eu sei a diferença entre adaptação e especiação: a adaptação é um passo, a especiação é um conjunto de passos.”

O tema é mais complexo. Há várias formas de adaptação (por exemplo, comportamental) e há vários casos em que se demonstrou que os mecanismos de adaptação poderiam prevenir a especiação.

"Mas se olhares para as discussões sobre o assunto, incluindo a crítica do Humberto ao capítulo "Dos micróbios", verás que eu falo sempre de adaptações e a crítica que é feita é exactamente a de que a especiação demora muito tempo (o que aliás nem sequer é verdade, exactamente porque o processo se mede em gerações, como dizes e muito bem, e pode haver especiação muito rápida em espécies com uma rápida rotação de gerações)."

Não comento as conversas cujo contexto desconheço. De todos os modos o rápido em termos evolutivos é um rápido relativo... e depois, há que ser preciso quando se refere a palavra adaptação pois pode querer dizer muitas coisas.

“Já agora, existe uma grande tendência para achar que a especiação, mesmo de organismos complexos como mamíferos, demora milhões de anos. Ora a verdade é que não é bem assim, como mostram os poucos milhares de anos em que ocorreu domesticação de espécies, nalguns casos com ocorrência provavel de especiação. O mundo é muito mais instável do que tendemos a admitir e admitir isso tem implicações muito fortes no fundamento das políticas de conservação.”

A velocidade da seleção artificial não é a mesma que a taxa obtida com seleção natural. Na primeira a seleção impõe uma direção e na segunda o processo começa frequentemente com pequenas mutações (que derivam de processos aleatórios) que são depois modulados por mecanismos de seleção natural que operam em contextos ambientais também em mudança. Portanto a comparação parece-me pouco útil. De todos os modos, mesmo que a comparação fosse útil, os ditos “poucos milhares de anos” que referes continuam ser eternidades à escala das políticas de conservação .

Henrique Pereira dos Santos disse...

Estamos sempre a tempo.
1)"De todos os modos o rápido em termos evolutivos é um rápido relativo" Pois é exactamente esta ideia que é contrariada pelos factos narrados no artigo do Público. Se me disseres que a especiação é sempre um rápido relativo, estou de acordo contigo. Se me disseres que em evolução o rápido é sempre relativo tenho de dizer que há inúmeros factos (e, já agora, a teoria) que demonstra o contrário. Por exemplo, a adaptação das populações de coelho à mixomatose (e estamos a falar de um mamífero complexo) terá demorado trinta anos. Repara que se assim não fosse, haveria extinções em massa a cada variação ambiental, o que não se verifica.
2) Quando falei de especiação a propósito dos animais que co-evoluíram connosco falei de facto em domesticação e por issoo teu comentário está correcto. Mas há outras espécies que co-evoluíram connosco e não foram seleccionadas, tendo especiado a partir só da urbanização (como o caso dos ratos). Estamos pois a falar de processos que podem ser relativamente rápidos (aqui aplica-se o relativamente, porque estou a falar de especiação).
3) Para as políticas de conservação o que conta é a adaptação, muito mais que a especiação. E essa tem, muitas vezes, a mesma escala temporal das políticas de conservação: a dezena de anos.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Acredito que lá no fundo haja substância no teu argumento mas a forma como o expões distrai-me do que imagino seja o essencial para ti. O que me distrai é o uso vago de conceitos evolutivos para vender não sei muito bem que argumento. Os mecanismos de adaptação incluem mudanças genéticas, i.e., que implicam evolução, mas podem também implicar mudanças de distribuição (por dispersão), de comportamento (incluindo fenologia ou hábitos alimentares) e mesmo de tolerância térmica (em consequência da plasticidade intra-específica).

A expectativa teórica que invocas é que seja a evolução (adaptação genética) que seja relativamente lenta (com as devidas exceções que confirmam a regra, especialmente em plantas). As demais (dispersão, plasticidade, fenologia, comportamento, etc) podem ser rápidas e não implicam qualquer mecanismo evolutivo. Que as baratas aprendam a evitar o açúcar, como diz o artigo do Público que citas, nada diz sobre evolução das baratas, da mesma forma como não há qualquer mecanismo evolutivo associado à mudança de dieta dos pinguins de Adélia, no Antártico, que passaram, em menos de 200 anos, de se alimentar de peixe para se alimentar de krill.

De resto o teu exemplo dos ratos confunde-me. Há registos fósseis de "ratus ratus" no Plistocénico (e na pré-história e Egito antigo) e tanto quanto sei não há qualquer indicio de especiação associado à urbanização. O que há é a expansão da espécie em virtude da melhoria das suas condições de vida por "parasitismo" das sociedades humanas.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
O meu argumento é o seguinte:
Numa população com diversidade genética, a mudança de um comportamento dominante numa população pode ter uma base genética e ser extremamente rápido (medido em gerações, fazes bem em lembrar isso).
Tomemos os dois exemplos que temos, o dos pinguins e o das baratas.
Pode haver duas famílias de razões para explicar as alterações de dieta:
a) uma população que gosta de uma gama larga de alimentos mudou a sua dieta base em função de alterações de disponibilidade trófica;
b) uma população com diversidade genética mudou o seu comportamento dominante porque uma das dietas anteriores se tornou letal para os que a praticavam (é o que é descrito para as baratas, em que uma desvantagem anterior, a repulsa face ao açúcar, se tornou uma vantagem porque salva a vida aos têm essa característica genética e conduz à morte os que a não têm).
Esta segunda hipótese não é adaptação genética? Não faço ideia nem estou muito interessado em discutir o nome que se dê a este processo, por mim, pode ser Maria Albertina, mas o facto é que é uma das essências do darwinismo, mas é tão contra-intuitiva que mesmo darwinistas encartados se recusam a considera-la nas políticas de conservação.
Henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Bom se esse é o teu argumento a minha sugestão é que deixes o Darwin em paz como, de certo modo e por outras palavras te terá sugerido o Humberto Rosa. Em primeiro lugar, Darwin não entendia nada de genética. Em segundo lugar a diversidade genética de uma população pode, como dizes, favorecer adaptações. Mas estas adaptações não têm por que acarretar evolução no sentido Darwiniano. Quanto maior a diversidade genética, maior a diversidade fenotípica, logo maior a diversidade de respostas adaptativas possíveis. Estas adaptações não são rápidas. São imediatas pois já existem no seio das populações e a seleção natural favorece os fenótipos que mais se adaptem às circunstâncias do momento. Por exemplo, a tolerância à lactose existe em certos humanos e isso não implica necessariamente que estejamos frente a um episódio de evolução. Esses mecanismos de adaptação fenotípica facilitam a sobrevivência das espécies face, por exemplo, a mudanças cíclicas do clima e/ou outras alterações ambientais mas não comportam, necessariamente, uma direção. Na maior parte dos casos são mecanismos com avanços e recuos, i.e., com determinadas características a serem favorecidas num dado contexto e desfavorecidos noutros. Não há evolução, muito menos especiação. Há adaptação com vista à persistência. Pode esta variabilidade fenotípica favorecer a evolução? Pode, mas nestes casos estamos a falar, uma vez mais, de tempos evolutivos que são, regra geral, longos.

Dizes que os termos te importam pouco mas se queres invocar Darwin e mecanismos evolutivos nos teus argumentos é bom que saibamos do que estamos a falar.

Passando por cima do Darwin e da evolução que, pelos vistos, são acessórios nesta discussão, continuo sem entender a tua ideia de que existe uma rejeição de considerar-se a adaptação nas políticas de conservação. Estamos de acordo que a adaptação, como expressão de diversidade fenótipica ou de outros mecanismos ecológicos, pode dar-se em horizontes temporais curtos. Mas isso não quer dizer que possamos contar com ela como aliada das políticas de conservação pois a expressão destas adaptações é, no quadro do conhecimento atual, imprevisível.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
O teu comentário parece-me bastante confuso, provavelmente por eu não ter a capacidade para compreender tanta nuance de linguagem.
Mas tirando a tua ideia de que como Darwin não percebia nada de genética não há qualquer relação entre a teoria da evolução e a genética, no resto estou essencialmente de acordo.
Tem é pouca relação com o que venho dizendo, na medida em que eu estou a dizer, desde o princípio, que existem mecanismos de adapatação quase imediatos aos factores externos (como dizia Darwin) e que isso tem implicações na política de conservação, em especial quando se adapta uma gestão adaptativa que vai evoluindo conforme os resultados, isto é, uma gestão que depende da forma como olhamos para os resultados.
Ao pôr de lado as hipóteses de adaptação das populações a ameaças externas, com o argumento de os processos evolutivos (ou de adaptação) são muito lentos, deixamos de lado imensas hipóteses interpertrativas que poderiam conduzir a opções de política de conservação diferentes.
Um exemplo óbvio: como se desvalorizam os mecanismos de adapatação das populações de coelho às doenças que vão aparecendo, valorizam-se outros factores de ameaça a que se tenta dar resposta (alterações de habitat, perseguição directa, fragmentação de habitat e um sem número de outras hipóteses). E isto é ampliado para as populações de predadores de coelho (que são muitas).
Por isso gastam-se rios de dinheiro em políticas de resposta a ameaças imaginadas, e falta dinheiro para gerir ameaças reais.
Eu saberia que virias com o argumento de que "não quer dizer que possamos contar com ela como aliada das políticas de conservação pois a expressão destas adaptações é, no quadro do conhecimento atual, imprevisível", exactamente porque estou careca de encontrar este quadro mental nestas discussões.
Ora a minha questão é que é exactamente por serem imprevisiveis que não podem ser descartadas hipóteses numa gestão adaptativa.
Simplesmente a grande maioria dos conservacionistas tem uma enorme dificuldade em integrar essa imprevisibilidade no seu quadro mental quando está a tomar decisões, emborem aceitem muito bem com essa imprevisibilidade, na teoria.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...

Henrique,

Sobre a discussão evolutiva, pelo menos eu, fiquei esclarecido. Passo adiante...

Sobre o resto continuo sem entender muito bem onde queres chegar. Na gestão adaptativa tomam-se decisões baseadas em factos comprovados, não em teorias. Se uma população está ameaçada hoje e amanhã deixa de o estar, a gestão adaptativa implica que se tomem medidas consonantes com esta mudança de estado (pouco importa se o gestor acredita ou não acredita que a população de uma espécie se possa adaptar às ameaças pois as decisões só são tomadas uma vez comprovado um efeito). Qual é a dúvida?

Também não entendo o teu exemplo dos coelhos. Dizes que se desvaloriza a capacidade de adaptação dos coelhos à doença e como tal se valorizam outras fontes de ameaça!?!?! Estou baralhado. De todos modos os coelhos continuam a morrer como "tordos" afetados pela doença hemorrágica. Onde está a adaptação? Quando os coelhos deixarem de morrer (se deixarem de morrer) e as populações estabilizarem em virtude da seleção e expansão de indivíduos resistentes o problema deixará de existir e os gestores preocupar-se-ão com outros assuntos. Qual o problema?

Depois dizes: "a grande maioria dos conservacionistas tem uma enorme dificuldade em integrar essa imprevisibilidade no seu quadro mental". Bom isto é verdade para muito boa gente e o mecanismo para lidar com incertezas em conservação é, como dizes, a gestão adaptativa. Mas o problema não é os conservacionistas não quererem/saberem lidar com incerteza mas sim não existirem mecanismos de gestão adaptativa na maior parte dos instrumentos de política de conservação. O problema está a montante, quanto a mim.

De todos modos, confesso que continuo sem entender esta tua cruzada argumentativa.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
A gestão adaptativa faz-se a partir da interpretação dos factos.
Retomemos o exemplo dos coelhos e dos linces.
Dizes tu, e terás com certeza razão, que continuam a morrer coelhos que nem tordos. Eu, gestor, encolho os ombros e não estou nada preocupado com isso, porque as populações de coelho estão a recuperar e há hoje muito mais coelho que havia há meia dúzia de anos.
Se eu achar que esta recuperação das populações de coelho resulta das políticas de conservação do lince, da imperial, na bonelli e por aí fora, tomo umas decisões.
Se eu achar que esta adaptação resulta dos mecanismos de adaptação da espécie à ameaça das doenças, tomo outras.
No primeiro caso ponho os recursos a replicar as políticas de conservação que têm vindo a ser seguidas.
No segundo, ponho os recursos no acompanhamento das populações de coelho e na criação de mecanismos de segurança para as populações predadoras menos flexíveis do ponto de vista trófico.
Nos meu comentário anterior não fui tão preciso como deveria em relação à questão da imprevisibilidade. Há uma enorme imprevisibilidade em relação aos mecanismos de adaptação, estamos de acordo, no sentido em que não sabemos à priori como funcionam e onde está o factor que vai permitir que alguns indivíduos da população resistam a uma ameaça e se tornem dominantes se essa ameaça for globalmente importante para a espécie (como as armadilhas para baratas com base na sua atracção pelo açúcar).
Mas, e isso é muito relevante, é que a existência desses mecanismos, mesmo que não saibamos quais, é bastante previsível (pelo menos desde Darwin), ou mais precisamente, a probabilidade de haver mecanismos desses é muito alta (por exemplo, a probabilidade das populações de lince estarem adaptadas a grandes flutuações de coelho é provável).
Portanto, no desenho de programas de monitorização e no desenho de modelos de dinâmica das espécies, essa probabilidade deveria ser tida em atenção.
E raramente é.
henrique pereira dos santos

Miguel B. Araujo disse...


"Dizes tu, e terás com certeza razão, que continuam a morrer coelhos que nem tordos. Eu, gestor, encolho os ombros e não estou nada preocupado com isso, porque as populações de coelho estão a recuperar e há hoje muito mais coelho que havia há meia dúzia de anos."

Eu também encolho os ombros porque dois pontos no tempo não permitem fazer inferências sobre dinâmicas de população no longo prazo e a menos que esta informação esteja complementada com outra (evidência de que existem populações imunes à doença hemorrágica viral), eu continuo com as mesmas preocupações.

"Mas, e isso é muito relevante, é que a existência desses mecanismos, mesmo que não saibamos quais, é bastante previsível (pelo menos desde Darwin), ou mais precisamente, a probabilidade de haver mecanismos desses é muito alta (por exemplo, a probabilidade das populações de lince estarem adaptadas a grandes flutuações de coelho é provável)."

Não é bem assim. A maior parte das espécies do planeta já se extinguiram (mais de 99,9999%) e todas as restantes seguirão esse caminho sem exceção. Os mecanismos de adaptação não são infalíveis. No caso do lince com a agravante de estarmos a falar de abundâncias reduzidas que aumentam o risco de extinção por aquilo que Raup designava de "bad luck".

Henrique Pereira dos Santos disse...

Miguel,
Este teu último comentário é muito interessante porque evidencia bem a distância a que as nossas diferentes perspectivas (a tua, de académico, a minha, de gestor) nos colocam, sem que estejamos no essencial em desacordo.
Do que eu preciso é de tomar decisões hoje sobre afectação de recursos. Portanto, ao olhar para trás e verificar uma baixa brutal de coelho nos anos cinquenta (mixomatose), outra nos anos oitenta (hemorrágica viral) e verificar uma poderosa e constante inversão de tendência nos últimos dez anos, preocupo-me essencialmente com a preparação da resposta à próxima doença, proque vi o que aconteceu a um conjunto de predadores enormes e de como isso condicionou o uso dos recursos disponíveis. Tu preocupas-te em ter mais informação sobre as tendências de longo prazo e em verificar se as actuais populações de coelho têm ou não mais resistências à hemorrágica viral antes de usares o que sabemos desta dinâmica populacional no desenho de políticas.
Repara que as duas perspectivas não são sequer mutuamente exclusivas, são em grande parte complementares, mas o facto de que ter de tomar decisões hoje e tu estares concentrado em saber mais acaba por nos afastar na discussã teórica, sendo que provavelmente os dois tomaríamos decisões muito similares se os dois tivéssemos as responsabilidades de as tomar.
Quanto ao segundo ponto: há alguma evidência (genética) de adaptação do lince a pequenas populações da espécie. O que não significando que não se possa extinguir po bad luck, também diminui as probabilidade de isso acontecer. Mas como sabes defendo a manutenção de um programa de conservação ex-situ porque reconheço que esse risco é real e tem um grau de probabilidade razoável.
O que é diferente de achar que a população está em risco por outra coisa que não seja a fome. E esta hipótese, que é defensável com os dados existentes (o que não quer dizer que seja verdadeira) tem sido descartada pelas políticas de recuperação da espécie, que atiram ao problema da fome, mas também a muitos outros, com gastos de recursos muito imnportantes e retornos que podem ser muito baixos.
henrique pereira dos santos