domingo, novembro 02, 2008

A gilbardeira


A propósito da discussão interessante que se seguiu ao post sobre o sisão, gostaria de retomar um tema.
Começo pelo exemplo a gilbardeira, espécie protegida pela Directiva Habitats, embora no seu anexo IV, protecção essa que qualquer português que medianamente saiba de vegetação considera estranho face à ausência do menor sinal de necessidade de medidas de protecção à espécie.
Passo ligeiramente pelo argumento que Miguel Araújo tem usado com frequência, e bem, e que diz respeito à escala a que estamos a discutir a política de conservação: uma espécie pode estar ameaçada globalmente e ser abundante localmente, devendo, por isso, ser objecto de medidas de conservação.
Não questionando o acerto deste argumento acho que vale a pena lembrar que o seu corolário é o de que é ao nível que se definem as regras de conservação que devem também ser obtidos os recursos para essa conservação.
Se o interesse de conservação é local (por exemplo, um pequeno troço de rio num concelho fortemente urbanizado) é a esse nível que devem ser encontrados os recursos para essa conservação.
Ao inverso, se o interesse de conservação é global (ou neste caso, europeu) é a esse nível que devem ser procurados os recursos para a conservação desse valor (a gilbardeira, ou a lontra, por exemplo, não tendo qualquer problema de conservação em Portugal, devem ter a origem dos recursos para a sua conservação colectados à escala europeia).
Sob pena de uns comerem os figos e aos outros lhes rebentar a boca (ou em jargão burocrático, não ser aplicado o princípio da subsidariedade).
Mas não era este aspecto que queria tratar neste post mas fazer um pequeno comentário a esta frase do comentador AC:
"quando falo em espécies prioritárias, falo em espécies da directiva 92/43/CEE e não em prioridades. Algumas espécies consideradas como prioritárias nessa Directiva são bastante mais comuns em Portugal do que outras que ficaram "esquecidas". Nos vários estudos de impacte ambiental que li, é frequente dar-se uma grande relevância à ausência de espécies prioritárias, quando podem existir espécies não protegidas muito mais ameaçadas do que as ditas "prioritárias". É neste contexto que discordo da designação prioritárias"
Quando questionei um dos negociadores do Estado Português dos anexos da Directiva Habitats em relação ao facto de neles constar a gilbardeira a resposta que obtive foi a de que o que se conseguiu na negociação foi a sua deslocação do anexo II para o anexo IV, limitando bastante o impacto da sua inclusão nos anexos da directiva. Se isso não tivesse sido feito Portugal teria de incluir na rede natura áreas para a conservação da gilbardeira, o que não faz o menor sentido. Mas não foi possível eliminar a sua inclusão face a outros países que têm muito peso negocial e onde a espécie é rara. Para esta dificuldade contribuía bastante o estado do conhecimento sobre a espécie em Portugal, onde é manifestamente abundante mas não existe demonstração num sistema de informação sobre o património natural sólido e credível.
Se esta situação é complicada por dar origem a situações como a da gilbardeira, é ainda mais complicada por dar origem à desprotecção de muitas outras espécies, ameaçadas em Portugal, mas não ameaçadas ou mesmo inexistentes noutros países.
A isto pretende o novo regime jurídico da conservação dar alguma resposta, não só institucionalizando um sistema de informação do património natural mas sobretudo criando um cadastro nacional autónomo de espécies, habitats e outros valores naturais ameaçados que nos permita dar resposta à necessidade de medidas de conservação ao nível nacional.
E permitindo que este cadastro possa ser alimentado por qualquer pessoa ou qualquer grupo de pessoas ao integrar a possibilidade de qualquer pessoa propôr a integração de um valor no cadastro com base na informação disponível.
Andou bem o Governo.
Meus caros, acabou a cómoda posição de responsabilização exclusiva do Estado pela existência ou não de medidas de protecção a um determinado valor: a partir deste regime jurídico todos somos responsáveis, pelo menos por não propormos a integração de um valor no cadastro e por não iniciarmos este processo com a fundamentação de que dispomos.
"É triste ser-se crescido e ter responsabilidades" e talvez por isso esta alteração introduzida pelo novo regime jurídico de conservação tenha tido tão pouco eco até agora.
henrique pereira dos santos
PS Art.º 29º do DL 142/ 2008 de 24 de Julho, "5 — Na elaboração da proposta de actualização (do cadastro) a autoridade nacional deve ter em conta as propostas apresentadas por qualquer entidade pública ou privada ou pessoa singular, desde que devidamente fundamentadas em informação científica."

5 comentários:

Miguel B. Araujo disse...

Caeo Henrique, Interessante a tua passagem sobre a escala das prioridades e a fonte dos financiamentos. sobre o tema estou a escrever um artigo de fundo que enviarei para a revista Science. Não sei se o aceitarão mas fica a promessa de aqui escrever um resumo e mostar uns dados curiosos sobre a distribuição dos fundos Europeus para conservação. Portugal foi mau negociador, contrariamente a Espanha, Reino unido, Franá e alemanha. A seu tempo voltarei a este tema.

Anónimo disse...

Caro Henrique, felizmente esta temática está a ser bem debatida aqui neste blog. Era o meu propósito quando levantei estas questões.
É com algum regozijo que recebi esta notícia que será criado um cadastro. Como poderemos nós, cidadãos interessados, contribuir para o mesmo?

Apenas um reparo o gilbardeiro está no anexo V e não IV da directiva. Este anexo visa a protecção de espécies alvo de procura/ apanha, no caso do gilbardeiro, devido ao interesse decorativo.
O anexo IV abrange as espécies que necessitam de uma "protecção rigorosa" e assim engloba todas as espécies do anexo II. O menor "peso" apenas se deve ao facto da conservação destas espécies não implicar o estabelecimento de "SIC".

AC

AC

Anónimo disse...

A Gilbardeira é muito frequente em Portugal e efectivamente não necessita de protecção, apesar de ser apanhada no natal como substituto do Azevinho, já que as bagas vermelhas estão maduras no Inverno, pelo Natal. Este novo regime jurídico é muito interessante, e se todos contribuírem sem dúvida que daqui a uns anos as nossas listas de espécies e habitats corresponderão melhor à realidade nacional. Relativamente às plantas, há uma boa notícia que poderá contribuir para a produção de informação botânica de qualidade, como a que será necessária para justificar a inclusão de novas espécies no Anexo II, IV ou V. Está em fase de formação uma associação de Botânicos, que não sei ainda como se irá chamar, mas que poderá fornecer a massa crítica necessária para dar um salto qualitativo e quantitativo no conhecimento botânico no nosso país.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro AC,
Tem razão, eu não fui conferir os anexos, mas a ideia era exactamente chamar a atenção para essa diferença entre os anexos.
Qualquer cidadão pode apresentar, fundamentando cientificamente (o que não significa que tenha de fazer um doutoramento sobre o assunto), propostas de inclusão de qualquer valor no cadastro referindo:
i) Descrição e distribuição geográfica;
ii) Razões que lhe conferem um reconhecimento internacional,
nacional, regional ou local;
iii) Estado de conservação;
iv) Ameaças à sua conservação e, se atribuído, o respectivo
estatuto de ameaça;
v) Medidas de conservação já adoptadas;
vi) Objectivos e níveis de protecção a assegurar;
vii) Medidas de conservação e orientações de gestão
a adoptar.
henrique pereira dos santos

Henrique Pereira dos Santos disse...

Precisando:
Esta é a minha leitura do que está na lei, não sei qual será a de quem terá de a aplicar.
Nas versões iniciais do regime jurídico estas pessoas poderiam apresentar propostas de inclusão no cadastro (não se dizia a quem mas como a decisão sobre o cadastro é do conselho de ministros pressupunha-se que ao Governo. Todas as propostas eram assim sujeitas a discussão pública, em princípio. Na versão que foi aprovada as questões processuais estão mais claras mas em rigor o ICNB é que faz as propostas devendo ter em atenção as que lhe são apresentadas pelos cidadãos.
Há perdas e ganhos das versões iniciais para as finais, neste caso ganhou-se em clareza processual o que se perdeu em autonomia face ao Estado.
henrique pereira dos santos