Quarto e último post da série desencadeada pelos comentários de Miguel Rodrigues sobre a questão da conservação do lince.
Note-se que nos comentários deste post e deste e ainda deste, a discussão continua lenta e civilizadamente.
Há bastantes anos, numa das poucas vezes que fui a Inglaterra (já vivi em mais de quarenta casas diferentes, pelas minhas contas, mas sempre viajei pouco) encontrei um indivíduo que geria um excelente projecto de educação ambiental. A fórmula organizativa que tinha escolhido para gerir o projecto era a de empresa sem fins lucrativos (ao contrário do que muitas vezes se diz, a função distintiva da empresa é criar riqueza, não é dar lucro. O lucro é uma condição de sobrevivência). Surpreendido perguntei-lhe se não teria sido melhor fazer uma ONG. Explicou-me que sim, que poderia ter optado por isso, mas não queria fazer duas coisas essenciais numa associação: uma news letter pelo menos uma vez no ano com a demonstração do bom uso do dinheiro dos sócios e uma gestão de sócios que inevitavelmente consome recursos importantes.
Eu acho que este senhor definiu de forma magistral as características base de uma ONG.
Uma associação é uma organização que junta pessoas com interesses comuns que estão disponíveis para aplicar os seus recursos para materializar esses interesses. E porque entregam os seus recursos à associação, querem ter garantias de que são usados para os fins comuns que definem a associação.
Em Portugal não se pensa assim. Em Portugal pensa-se que uma associação tem fins definidos por obra e graça do Espírito Santo, fins esses que definem um estatuto moral superior a quem os persegue, pelo que a missão das direcções das associações não é materializar o que os sócios querem mas encontrar os meios para executar os fins da associação.
Desde que os recursos existam, os sócios são dispensáveis, porque os sócios, nesta concepção, são meros canalizadores de recursos para a prosecução de fins míticos que se impõem como evidências reveladas e não resultam da manifestação de vontade dos sócios.
Se, como é o caso em Portugal, é fácil arranjar fundos porque o Estado está capturado pelos grupos de interesses (onde se incluem todo o tipo de associações) e porque os recursos do Estado canalizados via Comissão Europeia (anda por aí gente enganada que acha que os fundos europeus não são recursos do Estado) são abundantes o trabalho essencial das direcções das ONGs é garantir que uma fatia desses fundos entram nas associações, tornando mínimo o peso do financiamento das associações pelos sócios, o que os torna inúteis (quando não um empecilho).
O que transforma as ONGs em empresas de prestação de serviços, que concorrem deslealmente com as empresas registadas como tais pela execução de projectos. E concorrem deslealmente, não só porque têm alguns benefícios (e condescendência na hora de analisar os resultados) como sobretudo detêm uma capacidade de influenciar as decisões que as favorecem na obtenção de recursos, usando para isso o seu estatuto de grupo de interesses socialmente positivo.
A demonstração de que as coisas são mais ou menos assim é que as maiores ONGs de Portugal, na área do ambiente (não estou a falar do ACP, uma grande ONG, talvez a maior, em Portugal) não têm departamentos de sócios consistentes e poderosos, mas têm departamentos técnicos bastante alargados.
Quer isto dizer que as ONGs devem estar impedidas de ter projectos?
Do meu ponto de vista, de maneira nenhuma. Mas deveriam estar obrigadas a ter o núcleo duro do seu funcionamento, nomeadamente a pessoa que decide tecnicamente sobre as opções da associação (ou se não decide, propõe e formata as decisões de terceiros) completamente financiada pelos sócios, única garantia de que as decisões sobre os projectos das ONGs visavam efectivamente cumprir a vontade dos sócios e não apenas garantir o emprego a quem tem o seu salário dependente do trabalho nas ONGs.
E completa separação de funções electivas e funções remuneradas (com excepção das que estatutariamente seja exercidas remuneradamente e precedidas de eleição, que neste caso deve implicar restrições fortes ao exercício do cargo, como a limitação de mandatos, a não participação em decisões estratégicas ou das quais seja beneficiário e a existência de um órgão de decisão superior a quem seja devido reporte frequente e detalhado).
Sem isto eu considero que não se está perante verdadeiras ONGs mas sim de empresas imperfeitas.
Que podem ser muito úteis, mas não são grupos de interesses organizados a partir de uma base de participação inteiramente livre.
henrique pereira dos santos
9 comentários:
Muito lúcido. Bom post Henrique. Espero que sirva de reflexão mesmo para os que não gostam de discutir ideias.
Belíssimo post, Henrique. Concordo integralmente com a sua visão.
Gonçalo Rosa
Por vezes concordo com o Henrique como é este o caso(é apenas um toque de humor...). É uma discussão pertinente que aliás a decorrer na Quercus, sendo que até eu próprio fiquei surpreendido que se forem à página quercus.pt, aos orgãos sociais e à direcção nacional e carregarem no nome de cada um dos elementos, diz o seu "estatuto" na Quercus. Deixo aos interessados fazerem a pesquisa e descobrirem os resultados :-)
Caro Henrique,
Mais um excelente post a tocar questões centrais relativamente às ONG’s. Aproveito a boleia para deixar algumas reflexões:
Quando dizes que “uma associação é uma organização que junta pessoas com interesses comuns que estão disponíveis para aplicar os seus recursos para materializar esses interesses” não posso estar mais de acordo e até acredito que em Portugal, as principais ONG’s de ambiente tenham nascido com este espírito. O problema é que elas nasceram a partir de um núcleo de reduzidas dimensões, de gente bem intencionada certamente, e não de um movimento alargado que tenha sentido a necessidade de se organizar numa ONG. Ou seja, a génese das ONG’s parece-me ser essencialmente elitista, sem que isso seja necessariamente uma coisa má, pois talvez fosse inevitável que assim acontecesse. O problema é que não sabem, ou não querem, democratizar-se de modo a que, alargando a massa associativa, envolvam os sócios na vida da associação. Isto exige trabalho, uma atitude aberta ao diálogo e a humildade para perceber que os não especialistas podem dar um contributo válido e podem contribuir com uma visão mais abrangente do que os especialistas.
Daí que, como dizes, ”em Portugal pensa-se que uma associação tem fins definidos por obra e graça do Espírito Santo, fins esses que definem um estatuto moral superior a quem os persegue, pelo que a missão das direcções das associações não é materializar o que os sócios querem mas encontrar os meios para executar os fins da associação”.
O resultado é que as associações funcionam como pequenas cliques e aos sócios resta apenas aderir ao ideário ou afastar-se.
É pena que em Portugal não haja uma ONG na área do ambiente com uma forte participação dos cidadãos que intervenha no terreno com acções concretas, de conservação da natureza ou outras, e que consiga envolver os cidadãos em geral e os verdadeiros actores no terreno, sejam eles pessoas ou entidades colectivas.
Rui Rufino
É notório a clarividência presente nos teus posts. Aqui tocaste num assunto muito relevante no que diz respeito às ONGA.
No entanto, não queria deixar de mencionar que uma ONGA é em primeiro lugar uma comunidade, por ventura bastante abstrata e volátil, mas não se deve tomar uma parte pelo total. As tuas observações dizer respeito às direções e restantes orgãos institucionais de uma ONGA e não necessariamente à comunidade no seu todo. As ONGA caracterizam-se por abrir espaço para muitas iniciativas espontâneas, que nascem " de baixo para cima" e que contrastam com os grande projetos "estruturantes" (leia-se dependente de financiamento público). Não quero deixar de dar um simples exemplo, onde não seria difícil arranjar mais uns tantos:
http://ecosanto.wordpress.com/, um projeto da autoria do núcleo regional Aveiro da Quercus. É um projeto corajoso, de iniciativa local e que deve ser mencionado como um exemplo a seguir: eis uma ONGA a meter mão a obra.
Um abraço,
Henk
Henk,
Tens alguma razão, claro que estou a generalizar indevidamente.
Poderiam ser dados vários outros exemplos, como o projecto das chegadas na SPEA, por exemplo.
Mas esse sentido de comunidade é uma coisa que se alimenta (ou não)nas organizações e os dirigentes é suposto serem leaders e não followers.
Repara, o Francisco faz um comentário simpático mas que permite uma pergunta: se o Francisco, que há anos e anos é um dirigente muito influente na QUERCUS (e de facto a QUERCUS é a que tem o menor desvio "empresarial", no sentido do post, de entre as maiores associações, talvez pela sua estrutura em núcleos com grande autonomia), concorda com o post e a QUERCUS não tem um departamento de sócios (tem pessoas que gerem administrativamente os assuntos dos sócios, entre os vários assuntos administrativos que tratam, que é uma coisa diferente), que esperança existe de que os sócios venham a ser mais comunidade que contribuintes nas grandes associações?
henrique pereira dos santos
Concordo com toda a crítica que apontas à forma como os sócios são encarados nas ONGA.
No entanto, é um pouco um pau com dois bicos, que se vê em muitos lugares na sociedade. São tanto os dirigentes que tratam mal os sócios como os sócios que se deixam tratar mal pelos dirigentes. São os cidadãos que elegem os políticos que os enganam. São as pessoas que voltam ao mesmo restaurante/loja apesar de serem mal atendidos e, embora que se queixam que se fartam, nunca reclamam pelos seus direitos. São os trabalhadores que dizem mal dos chefes que os gere mal mas que nunca assumam a sua crítica. E por ai fora.
E agora já um pouco off-topic: estou desejoso de ver chegar o dia em que acabam (pelo menos grande parte d)os subsídios, para finalmente entender quem está preparado (quem se preparou enquanto durou a fartura) para andar com pernas próprias e de forma socialmente responsável. Não hão de ser muitos...
Henk Feith
Mas não é esta visão realidade em Portugal?
A única organização de que sou sócio neste momento - falta minha - a LPN tem uma direcção eleita pelos sócios e um corpo de assessores com uma directora executiva remunerados.
As eleições decorrem com normalidade. As escolhas são as escolhas dos sócios, sem restrições.
O principal problema das ONGAs em Portugal é de facto a falta em número e envolvimento dos sócios e não a falta de ética organizacional.
A questão que o Henrique põe a descoberto é se se deve deixar morrer uma organização por falta de sócios?
Porque as ONGA em Portugal evoluiram numa lógica de sobrevivência institucional perante a falta de uma massa associativa forte e dinamizadora.
O que deveriam ter feito? Encerrado portas?
Eu concordo com as questões aqui expostas mas penso que não abordam as verdadeiras questões que confrontam as ONGA.
E não é igual ser-se ONGA ou ser-se empresa no que toca à capacidade de intervir na sociedade. Não se trata apenas de uma questão de dinheiro. Nada mais fácil que uma empresa dar sempre prejuízo e não ter de pagar impostos. Trata-se de poder intervir em consultas públicas, em ser ouvido pelos orgãos administrativos, etc. Nada disso é fácil - ou possível - para uma empresa.
Todo o post do Henrique supõe que as boas práticas que defende não são as que se aplicam nas ONGA. Na minha experiência não é o caso.
É interessante notar que a Quercus tem tido há muitos anos lutas internas entre os que ganham o dinheiro a trabalhar para a Quercus e os que voluntariam o seu tempo. Ainda este ano houve uma eleição onde se bipolarizaram ambos os campos. E que os não profissionais da Quercus acabaram por vencer com mais margem do que receavam. Felizmente.
Mas, mais uma vez, o Henrique supõe que nas ONGA o comportamento não é ético. E essa não é a minha experiência.
Caro Rui Pedro Lérias,
Ter sócios activos (isto é, no mínimo pagantes) não é uma coisa que caia do Céu, é o resultado de muito trabalho feito nesse sentido (como ter clientes numa empresa).
As ONGs (não todas, não todas da mesma maneira, mas a generalidade das mais conhecidas) não fazem nenhum esforço sério de assentar o essencial da sua actividade nos sócios.
Na LPN, que refere, há uns sócios que são mais sócios que outros porque têm mais votos nas Assembleias, ou seja, o princípio de um sócio, um voto, não se aplica. E como se ganham mais votos? Desempenhando cargos electivos. Uma pescadinha de rabo na boca.
Mas daí não vem grande mal ao mundo, as associações são livres de terem os arranjos estatutários que entederem (já tenho mais dificuldade em aceitar que o Estado atribua um estatuto de utilidade pública a uma associação que tem estatutos não democráticos).
A questão de fundo é outra: se as estruturas técnicas dependem dos projectos para assegurar os seus empregos estarão muito mais preocupadas em assegurar novos projectos que em saber o que são os interesses dos sócios.
E isso faz com que os sócios não se sintam parte das associações mas apenas contribuintes.
É só isso.
E como o Rui confirma, isso leva a conflitos entre os que são na verdade funcionários e os que entendem que o poder deve estar na mão dos eleitos e não na mão dos funcionários.
E neste post nem sequer falo de ética, falo de organização.
henrique pereira dos santos
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