sábado, março 06, 2010

O aterro e o dinheiro no bolso


Leio hoje no Público (de onde retirei a imagem do post) que o aterro do Caldeirão rebentou e está a afectar a ribeira do Vascão.
Ou me engano muito ou cruzei-me com este aterro lá para 1996 (provavelmente) ou 1997 (possivelmente).
O meu contacto foi relativamente breve mas foi uma das primeiras vezes que tive a noção clara da forma de trabalhar de José Sócrates, sobre a qual escrevi aqui no auge da expressão pública do processo Freeport.
Nesse post digo que "A Sócrates cabe a responsabilidade de um método de actuação voluntarista, determinado por objectivos pré-definidos mas que desconsidera a forma da decisão e a sua correcção processual. ... que cria um clima favorável à decisão ineficiente a prazo e à corrupção imediata, embora permita decisões rápidas e focadas nos objectivos"
Na altura em que me cruzei com o processo deste aterro eu era vice-presidente do ICNB e chegou um pedido de parecer à localização deste aterro, numa área que estaria para integrar a rede Natura, mas que formalmente ainda não estava designada como sítio. Estaria o processo em discussão pública e não estava transposta a directiva Habitats (reconstituindo o processo de cabeça não garanto a correcção de todos os pormenores, como datas e coisas que tal).
Entre papéis e telefonemas (portanto, não sei quanto disto está registado em documentos mas pode ler-se aqui o que penso sobre a informalidade dos processos de decisão) penso que o ICNB referiu a legislação comunitária, referiu as obrigações dos estados europeus para com os sítios potenciais rede Natura e disse que só emitia parecer no quadro de um processo de avaliação de incidências ambientais.
Mas formalmente, de acordo com o direito interno, o parecer do ICNB não era ainda obrigatório.
A actual Ministra do Ambiente (Dulce Pássaro) e a actual presidentde da ARH do Algarve (Valentina Calixto) decidiram, juntamente com o seu então secretário de Estado de tutela (José Sócrates), que o direito comunitário era uma bagatela que não deveria interferir no calendário político definido e prescindiram do parecer do ICN e da respectiva análise de incidências ambientais do aterro, a troco de umas promessas às populações mais próximas do aterro. E avançaram.
A opção pelo calendário político em detrimento da robustez do processo de decisão (a análise de incidências ambientais teria permitido discutir mais profundamente o projecto e as soluções para a sua execução) tem consequências hoje à vista, mais de dez anos passados.
Não, não é a chuva ou o azar ou o imponderável que provocam a situação actual, é a forma de decisão escolhida.
O sobrecusto que agora vamos ter de suportar, a ineficiência das decisões a prazo, os riscos patrimoniais, quer para os meus impostos, quer para os bens difusos, tudo isso não são obras do acaso, são o resultado natural (embora nem sempre verificado, felizmente) de um modelo de decisão pública, executado por gente irresponsável que nunca vai ser obrigada a repôr os custos adicionais que todos teremos de suportar com esta situação, embora em teoria seja possível ao Estado apurar responsabilidades e exigir aos responsáveis pelas decisões que assumam os pagamentos em que incorre o Estado.
Simplesmente um dos responsáveis é hoje primeiro ministro, outra é ministra do ambiente e outra a presidente do organismo de tutela da ribeira que está a ser afectada.
Já foi há muito tempo que escrevi isto, mas volto a transcrever, linkando para o post completo que então escrevi sobre o chamado interesse nacional subjacente aos projectos PIN:
E não se pense que é só pela delapidação do nosso património ambiental, é mesmo uma questão de competitividade e de eficiência no uso dos recursos, isto é, é mesmo uma questão de dinheiro no bolso.
henrique pereira dos santos

3 comentários:

Pedro Martins Barata disse...

Absolutamente de acordo. Subscrevo a 100%. Seria interessante aliás verificar o estado actual das infraestruturas construídas nesses anos loucos do início da década passada, quando era preciso gastar "à tripa forra" e construir o maior número de aterros possíveis "enquanto ainda viessem os subsídios". Já para não falar das perversas lógicas de localização de alguns deles.

OLima disse...

Obrigado por este texto de rara clareza e lucidez. Vai merecer a devida referÊncia no Ondas3. Octávio Lima.

Anónimo disse...

Parabéns pelo excelente post.
pela leitura da notícia, parece claro que aos organismos do "ambiente" não lhes interessava nada a divulgação da notícia. Este caso tem bastante de exemplificativo de como determinados actores se perpetuam nos lugares de decisão. Vejamos com atenção que monitorização se faz dos efeitos da descarga sobre o rio Vascão.