sábado, julho 16, 2011

Da reputação como valor de mercado



A discussão sobre a águia pesqueira que corre no fórum das aves é bastante interessante.
Inevitavelmente surge, embora marginalmente, um argumento: "Além do mais, as pessoas por trás deste projecto já fizeram mais pela conservação da bicharada tuga que todos nós juntos numa vida... Um bocadito de respeito e consideração ficam sempre bem.".

Sobre a substância deste argumento já disse num post antigo o que penso (no contexto aliás de uma discussão que se pode compreender melhor lendo aqui outro post). Apenas acrescento que nunca percebi como se mede o que cada um faz pela conservação da bicharada.

O que me interessa agora é avaliar o argumento acima invocado, que corresponde à formalização de uma reputação, para explicar por que razão o projecto da águia pesqueira deve ser discutido em termos estritamente empresarias, que é o que ele é, e não de conservação da natureza.

Como se sabe, marcas são associações de ideias. Invocar uma marca, qualquer que ela seja, é invocar um conjunto de ideias, como acontece quando alguém diz ferrari, skoda, mercedes ou hyundai, convocando de imediato na nossa cabeça ideias diferentes em função da marca.

O valor de uma marca vem do conjunto de ideias que ela consegue convocar e do interesse económico dessas ideias para o negócio que se constroi em cima dessa marca.

A marca EDP tem, historicamente, um problema de reputação ambiental (muito mais agravado noutras marcas que também investem bastante em conservação, como por exemplo, Portucel). Como essa reputação afecta o seu acesso à licença (ou seja, sobretudo a sua capacidade para ter autorização para fazer barragens, que é prejudicada pela contestação política, pela luta jurídica e etc., assente em argumentos ambientais) a EDP tem procurado, legitimamente aliás, alterar essa reputação.

Ao contrário de uma acusação corrente e injusta, essa alteração não tem sido procurada apenas ou sobretudo pelo lado da comunicação, mas procura, como em qualquer empresa bem gerida, ir ao fundo da questão eliminando no processo produtivo as razões que fundamentam essa reputação ambiental negativa.

A EDP passou a levar a sério as questões ambientais (coisa para que se estava nas tintas há trinta ou quarenta anos), passou a integrar no seu processo de decisão critérios ambientais, passou a investir em biodiversidade e também passou a comunicar muito mais o que faz em matéria de conservação da biodiversidade.

Neste contexto a EDP adere à iniciativa Business and Biodiversity e lança o fundo EDP de biodiversidade, que tem alimentado um processo concursal de apoio a projectos de conservação executados por terceiros, num valor em torno dos 500 mil euros anuais.

Na sequência de uma campanha mediática infeliz da EDP, as ONGAs mais mediáticas decidiram boicotar a sua participação neste fundo. Ou seja, o lançamento anual do processo concursal para apoio a projectos de conservação passa a ter um valor negativo reputacional na medida em que é um pretexto para as ONGAs, mais uma vez, dizerem que a política de biodiversidade da EDP é uma fraude. Esta alegação é totalmente falsa, a EDP tem uma política séria de biodiversidade, criticável em muitos aspectos, é certo, mas é uma política real, concreta e séria, só que para efeitos reputacionais é irrelevante o facto desta alegação ser falsa.

É neste contexto que surge o golpe de génio empresarial associado ao projecto das pesqueiras: dois empreendedores do sector da conservação, cuja reputação está descrita no parágrafo que cito no início, apresentam à EDP um projecto que lhe permite associar a reputação destes empreendedores à reputação da EDP, numa estratégia de ganho simultâneo que interessa a todos, tanto mais que o projecto tem, não por acaso, boa imprensa.

Legitimamente os dois empreendedores vendem serviços à EDP onde está incluído um módico de reputação que inflaciona o interesse, e consequentemente o preço, da EDP.

Repare-se que o que está em causa é vender a libertação de aguiotos a mais de dez mil euros por cabeça durante cinco anos, o que num mercado concursal e aberto teria com certeza vários interessados (eventualmente eu, com uma equipa especificamente montada para o efeito) competentes (seguramente não é o meu caso quando avaliado isoladamente) a fazer o mesmo serviço por menos de metade do preço. O que verdadeiramente legitima o preço pago pela EDP não é o serviço em si, mas a mais valia de reputação.

Se isso significou ou não a ausência de concurso para o acesso ao Fundo EDP de biodiversidade este ano, não sei, quero crer que o concurso está apenas atrasado, mas veremos com o tempo. Seria muito irónico que as ONGAs, com uma contestação completamente tola do único processo nacional concursal para acesso a financiamento de projectos de conservação, tivessem liquidado essa rara janela nacional de oportunidade, transparência e democraticidade no campo da conservação.

É por tudo isto (mais a ausência óbvia de qualquer razão de conservação séria para levar a cabo este projecto) que concluo que tudo o que roda à volta deste projecto, como a discussão no fórum das aves bem demonstra, não tem nenhuma relação com conservação, mas sim com relações económicas normais entre várias empresas e empreendedores.

Declaração de interesses: também eu sou um pequeno empresário do sector da conservação e, nesse sentido, estou a falar de coisas nas quais tenho interesse directo. O meu sector de negócio é o mesmo dos empreendedores que cito, a gestão da biodiversidade, embora o meu posicionamento no mercado seja noutro segmento totalmente diferente. Só se eu fosse louco me tentaria posicionar no mercado que vende reputação, pelo menos reputação junto do movimento ambientalista. Também só uma organização ou pessoa totalmente desconhecedora do meio me contrataria pensando comprar reputação junto da opinião pública ambiental (como se diz aqui num comentário, só o tretas leva a sério o que eu digo). Os meus principais concorrentes neste mercado incluem os agentes económicos que se situam entre as ONGAs e as Universidades, são as Universidades, em si mesmo, enquanto prestadoras de serviços e são as ONGAs, também enquanto prestadoras de serviços. Reconhecendo eu que todos estes concorrentes têm vantagens competitivas imbatíveis para mim no domínio do lobying e do acesso ao mercado da reputação, naturalmente posicionei-me no mercado, menos remunerador mas muito satisfatório, da resolução de problemas concretos e reais de gestão de biodiversidade de quaisquer tipo de organizações mais interessadas em fazer bem o que acham que têm de fazer e menos preocupadas com a sua imagem no movimento ambientalista.

henrique pereira dos santos

1 comentário:

Luís Lavoura disse...

"Reconhecendo eu que todos estes concorrentes têm vantagens competitivas imbatíveis"

Uma dessas vantagens é-lhes concedida pelo Estado: o facto de não cobrarem IVA sobre os serviços que prestam.

Uma vantagem verdadeiramente repugnante, digo eu.