segunda-feira, maio 17, 2010

Barão de S. João

Roubei a fotografia à Almargem
Leio no Público que terá sido ontem inaugurado o Parque Eólico de Barão de S. João.
Cruzei-me em várias ocasiões com este projecto, sempre na posição de quem tinha a responsabilidade de salvaguardar os interesses da conservação no processo de licenciamento. A primeira vez que tomei contacto com o processo já ele tinha uma longa história, com algumas asneiras evidentes por parte de conservacionistas que acham que as suas opiniões devem ser acatadas por direito divino e não por traduzirem, de forma fundamentada, o que está escrito na lei.
É um exemplo bastante bom dos projectos em que tive tantas discussões com os promotores, licenciadores e etc., que apoiavam o projecto, como com os meus colegas da conservação que entendiam que o projecto deveria ser liminarmente chumbado. Tem a particularidade desta situação ter sido ilustrada por um email tresmalhado de um dos consultores do promotor ter vindo parar inadvertidamente à minha caixa de correio pedindo a técnicos do ICNB que chumbassem o projecto, ao mesmo tempo que se assinavam estudos que diziam o contrário.
Mas não é sobre miséria moral que quero fazer um post, é mesmo sobre como foi construída a decisão.
O projecto foi inicialmente contestado liminarmente pelos conservacionistas pois localiza-se no principal corredor migratório conhecido em Portugal, o que certamente implicaria impactos muito grandes para a avifauna que usa aquele corredor.
Duas questões se levantaram contestando esta ideia base: 1) em concreto qual é a dimensão e configuração do dito corredor?; 2) outros parques eólicos já existentes no dito corredor estavam a ser monitorizados e os resultados não confirmavam a ideia de elevada mortalidade de espécies protegidas migradoras (nem de outras, diga-se em abono da verdade).
Como é costume em conservação, uma outra questão foi levantada: um casal de águia de bonnelli andaria por ali e aquele era potencial sítio de nidificação qualquer dia (é frequente quando aparece um projecto de que alguns conservacionistas não gostam para um sítio qualquer aparecer também informação de conservação que justificaria o chumbo imediato do projecto com base no princípio da precaução).
Com a pressão conhecida (e legítima) para a produção de energias renováveis, qualquer dificuldade no licenciamento deste tipo de projectos tinha como consequência eu ouvir o que Maomé não disse do toucinho (diga-se em abono da verdade, mais dos diferentes organismos do Estado e tutela política que propriamento dos promotores, de maneira geral muito mais razoáveis e racionais que os caniches de que a administração pública está cheia, sempre a abanar a cauda à voz do dono).
O resultado foi o chumbo do projecto tal como estava previsto e naquele momento, embora com reconhecimento de que a decisão poderia ser revista se a informação sobre a águia de bonelli fosse mais consistente (o princípio da decisão era de que na dúvida é preciso tratar o risco como um facto) e a informaçaõ sobre a migração fosse também mais consistente, permitindo assim discutir o risco de forma mais racional.
Como disse lá ouvi o costume (para alguns dos que me lêem neste blog pode parecer estranho, mas eu era considerado um perigoso radical conservacionista em alguns meios, ao mesmo tempo que noutros meios, o que se reconhecerá mais facilmente, um perigoso vendido aos interesses).
O projecto fica suspenso enquanto durante um ano se estuda a bonelli, mais a migração, mais se refina a informação sobre a mortalidade nos parques eólicos existentes.
Sobre a bonelli a coisa ficou mais ou menos resolvida (a espécie está em expansão na zona, não há grande notícia de afectação por infra-estruturas, os factores de ameaça são conhecidos e é, portanto, possível desenhar medidas compensatórias de modo a compensar o risco diminuindo os factores de ameaça da espécie).
Sobre a monitorização dos parques eólicos existentes confirma-se a informação de que não há grande mortalidade, a que há não é de espécies protegidas em migração e que grande parte do que se sabe indicia que um maior afastamento dos aerogeradores (deixando um sim, outro não, na proposta) resolve uma das causas de mortalidade identificada: ao detectar um aerogerador as aves desviam-se de forma brusca e vão morrer no aerogerador do lado. Mais, a monitorização, com um Estado sempre desconfiado, foi feita com duas metodologias sobrepostas, uma pelo promotor e outra pelo Estado, com a participação da SPEA, penso eu, sendo que os resultados mais favoráveis à conservação, e mais desfavoráveis para o promotor, são os do estudo do promotor.
Sobre a migração um acompanhamento aturado permite perceber que a grande maioria das aves voam a alturas que não interferem com os aerogeradores (ou dizendo melhor, os aerogeradores estão colocados a alturas que não interferem com o vôo), sendo muito reduzidas as probabilidades de interacção entre o parque eólico e a migração.
Ainda assim, o risco existe.
E chegamos ao ponto mais interessante deste projecto: a medida de minimização duríssima e complexa, que acabámos por impôr, procurando desenhá-la em todos os pormenores que permitissem a fiscalização pelo Estado do seu cumprimento. A medida não foi desenhada pela administração, foram sim definidos os seus parâmetros, de forma clara, racional e fundamentada em razões de conservação, de necessidade de transparência e capacidade de fiscalização. Foram ainda sugeridas as tecnologias com base em radar para a sua aplicação. O resto foi feito pelos consultores.
Definiu-se um perímetro na envolvente alargada do parque eólico, e impôs-se que se um número mínimo de aves de espécies definidas (foi aí que eu percebi as fragilidades do livro vermelho, ao notar que as espécies ameaçadas, que era o primeiro critério que nos pareceu lógico, incluíam espécies abundantes e vulgares, o que me levou a ir estudar por que razão eram consideradas ameaçadas, estudo esse que achei muito instrutivo, não tanto em matérias de conservação mas especialmente em matérias relacionadas com a psicologia de grupo) entrassem no perímetro os aerogeradores tivessem de ser imediatamente parados.
Caiu o Carmo e a Trindade, quer por parte do conservacionistas que desde o primeiro momento (e penso que ainda hoje) acham que o parque eólico não deveria ser autorizado naquele sítio, quer por parte dos promotores e seus "facilitadores" na administração, para quem a medida implicaria a inviabilidade do parque eólico.
Leio hoje no Público que o parque foi ontem inaugurado e inclui tecnologias portuguesas inspiradas na NASA para dar cumprimento a esta medida.
Dentro de dois anos, graças às fortes obrigações dos promotores em matéria de monitorização, teremos uma ideia se foi uma boa ou má decisão autorizar este parque eólico.
Eu não sei, sei apenas que aprendi muito em processos deste tipo, quando procurei levar a conciliação da conservação e da actividade económica ao limite do possível, especialmente quando os projectos tinham outros benefícios ambientais inquestionáveis.
E arranjei mais inimigos do que alguma vez pensei ser possível. De um lado e do outro das barricadas, como acontece a qualquer mestiço.
Mas também é verdade que para além de dormir hoje muito descansado, há uns quantos que concordando ou discordando do que digo, demonstram um respeito confortável para comigo.
Thanks a lot, para estes.
henrique pereira dos santos

7 comentários:

EcoTretas disse...

Obrigado pela descrição na primeira pessoa. Já agora, alguém sabe quais são as tarifas feed-in praticadas para este parque. E os mecanismos compensatórios previstos pelas paragens dos aero-geradores?

Ecotretas

Henrique Pereira dos Santos disse...

Tretas,
Já é obsessão. As tarifas são as mesmas dos outros parques eólicos (isto é, há uma primeira geração de tarfias mais altas e os seguintes vão tendo tarifas mais baixas, coisa que nunca é referido porque quem faz as contas às tarifas do que ainda vai ser instalado.
Não há mecanismos nenhuns de compensação das paragens dos aerogeradores por razões de conservação, faz parte das condições de licenciamento.
henrique pereira dos santos

EcoTretas disse...

Não é nada obsessão! É querer saber o que deveria ser público! E fiz a pergunta porque acredito que saibas as respostas, como acabaste de parcialmente as dar!

Ecotretas

Henrique Pereira dos Santos disse...

Tretas,
As tarifas são do conhecimento público, eu é que não sei exactamente porque não fui procurar e não é a minha área de trabalho. O que disse ouvi-o por aí, se queres que te diga nem sei onde (penso que nesta discussão recente sobre preços da energia eólica).
Vai ver aos sites do costume (ERSE, REN, EDP e essas coisas que depressa encontrarás com certeza. Eu é que tenho mais que fazer. Chega-me uma ordem de grandeza, que já referiste vezes sem conta.
henrique pereira dos santos

EcoTretas disse...

Eu perguntei porque como este processo se arrastou bastante, não sei até que ponto se aplicarão as tarifas da altura...

Ecotretas

Henrique Pereira dos Santos disse...

Se bem me lembro, mas posso estar enganado, um dos argumentos invocados para exigir celeridade no processo de decisão prendia-se com o facto de o momento de ligação á rede determinar o tarifário, mas não tenho a certeza.
henrique pereira dos santos

G.E. disse...

Henrique,

Há dois anos escreveste isto:
"Dentro de dois anos, graças às fortes obrigações dos promotores em matéria de monitorização, teremos uma ideia se foi uma boa ou má decisão autorizar este parque eólico."

Será que nesta altura é possível chegar a alguma conclusão?

Gonçalo E.