domingo, outubro 04, 2009

E quanto gastamos mais por hectare agora?


Por estes dias, penso que ontem, o Público tinha uma notícia sobre fogos muito interessante para vermos como funciona a informação nesta matéria.

Vejamos alguns extractos:

"Área ardida em 2009 já supera a dos últimos três anos"

Até aqui nada de especial: os últimos três anos foram bastante benignos e só quem quis é que engoliu a conversa da melhoria da eficiência do dispositivo (que terá existido) como explicação para os sucessos nesta matéria. Já em Fevereiro de 2009 tinha escrito sobre isto.

"Agora, o área ardida chega a 77.131 hectares.Este valor ainda está abaixo da meta fixada pelo Governo no Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios – a de não ultrapassar 100.000 hectares por ano."

Neste post já procurei explicar como é absurda a meta dos 100 000 hectares, que ultrapassa em mais de dez mil hectares a mediana dos últimos vinte anos. E confirma-se que este ano estaremos seguramente a rondar a mediana, excepto se o Outono e Inverno tiverem longos períodos de vento Leste forte, situação em que ultrapassaremos a mediana. Ou seja, comparar a área ardida com um objectivo claramente laxista é evidentemente garantir resultados para a comunicação social, mas tem pouco interesse real (refira-se mais uma vez que o indicador área ardida é um indicador bem pobre para traduzir o bom ou mau trabalho sobre esta matéria, como procurei defender neste outro post bem como noutros).

"O comandante operacional da ANPC, Gil Martins, disse ontem que 40 por cento dos fogos deste ano começaram durante a noite, o que sugere causas humanas."

Sempre a mesma história: quando corre bem, são as nossas políticas que estão a ter êxito. Quando corre mal, é porque Portugal tem muitos incendiários. Mas não há um jornalista que pergunte se estes incendiários estavam todos presos o ano passado e foram todos indultados pelo Natal?

"Na contabilidade deste ano, quase 70 por cento de todos os incêndios tiveram origem humana, 30 por cento deveram-se a causas indeterminadas e um por cento, a causas naturais. De acordo com Mourato Cabrita, segundo comandante-geral da GNR, o número de fogos criminosos “mais do que duplicou”."

Aqui é mesmo falta de seriedade na discussão. Fala-se de origens humanas, logo a seguir de fogos criminosos porque o que se pretende é mesmo criar a ideia de que origem humana e fogo criminoso são basicament a mesma coisa, o que está muito longe de ser verdade. Volto a perguntar, mas o que aconteceu no ano passado a todos estes malandros para que não existissem fogos? Ou será que pura e simplesmente a forma como começam os fogos é muito pouco importante para os resultados da política e o essencial não é saber como começou o fogo mas sim, saber por que razão não foi possível pará-lo?

"Também houve um aumento no número de contra-ordenações.“As câmaras deviam exercer mais a sua capacidade coerciva sobre os cidadãos e exercer uma acção repressiva em caso de não cumprimento da lei”, disse Mourato Cabrita, dado o exemplo da limpeza das matas."

Eu acho de uma imensa ternura ver oficiais da GNR de um país que não consegue fazer cumprir o código da estrada, e muita outra legislação, acreditarem que será a acção repressiva das câmaras, exercida no meio dos montes imensos e sem ninguém, que vai resolver o assunto. Esta deliciosa ingenuidade faz-me ter na nossa polícia uma enorme confiança na sua capacidade de análise da realidade.

"Os meios aéreos fizeram mais 50 por cento de horas de voo do que em 2008 (6.230 face a 4.091) e descarregaram 66 milhões de litros de água para apagar os fogos, o equivalente a 40 piscinas olímpicas. ... “Se tivessemos tido o mesmo número de ocorrências provavelmente teríamos a mesma área ardida. O dispositivo [de combate a incêndios] não tem sucesso se não tiver a colaboração de toda a gente”, frisou."

Claro. Mas que tal começar por falar com o Ministério da Agricultura para ver se abandonam a política suicida de não remunerar devidamente os serviços ambientais e a política de favorecimento da floresta contra o pastoreio? E que tal ler o brilhante comentário de Paulo Fernandes que reproduzi neste post a propósito de um fogo de Inverno no Marão?

Mas sobretudo, que tal explicar por que temos vindo a gastar todos os anos muito mais dinheiro no dispositivo de combate aos fogos se isso afinal não é o essencial, como se reconhece nestas afirmações?

henrique pereira dos santos

2 comentários:

Henk Feith disse...

Caro Henrique,

Como sabes, idealmente, as estatísticas devem nos servir para formar uma opinião. No entanto, o mais frequente é de nos servirem para justificar uma opinião já formada. Sinto que isto acontece um pouco quando usas as estatísticas sobre os fogos.

O Público avança com um número de 77 mil hectares ardidas em 2009 até agora. Não sei a fonte do jornal, mas eu continuo a usar os relatórios da AFN como fonte principal. Até 15 de setembro arderam 59 mil hectares. Embora tenha havido bastantes incêndios na segunda quinzena de setembro, custa-me acreditar que ardeu um terço do total ardido até medias de setembro, nas últimas duas semanas.

A meta dos 100 mil. Aqui mostras alguma habilidade nos dados quando avanças com a mediana dos últimos anos. Para já eliminas os anos 2003 e 2005, sem perceber bem porque, mas fica a ideia que o resultado vem mais ao encontro do número que justifica melhor a tua argumentação. Não te esqueças que esse objetivo (dos 100 mil) vem em resposta às situações catastróficas vividas em 2003 e 2005. A estratégia visava sobretudo evitar repetições delas. Assim não faz sentido eliminá-las das estatísticas. Com a sua inclusão, a média 1996-2005 (porque o objetivo foi definido em 2006, logo não é correto incluir no cálculo da média os anos posteriores) é de 164 mil hectares.
Mas pronto, ao eliminar os dois valores, a média das áreas ardidas nos 10 anos anteriores é de 110 mil hectares. Mas se recurmos até 1990, a média de área ardida sobe até 144 mil hectares. Mais, entre 1990 e 2005, somente em 6 anos (38%) a área ardida ficou abaixo do objetivo estabelecido (92, 93, 94, 96, 99). De 2006 até 2009, nenhuma vez o objetivo foi falhado. Mas, se calculamos uma média móvel de área ardida sobre períodos de 4 anos, o período 2006-2009 é destacadamente a mais baixa desde 1994 (50 mil hectares (com 77 mil em 2009) contra 88 mil no período 1992-1995, o segundo melhor). Será do tempo? Só do tempo?

Penso que tens muito razão na crítica que fazes à estratégia de (falta de) prevenção e (excesso de) combate aos incêndios. Concordo que o mesmo dinheiro utilizado de outra forma teria resultados melhores com muitos benefícios para a sociedade rural. Mas penso que a utilização das estatísticas dos fogos não te é favorável, antes ao contrário. Se 2009 ficar pelos 80 mil hectares (o que me parece muito, considerando os dados de 15 de setembro), tendo em conta a área de fogos de inverno (15 mil hectares até março), tendo em conta que o terreno esteve com baixíssimos teores de humidade durante o verão, tendo em conta que 70% da área ardida são matos (de reduzido dano), se calhar o resultado não é assim tão desastroso. Se calhar uma taxa de incêndio que se situa entre os 2 e 2,5% não é nada mal para um país como Portugal.

Um abraço,

Henk

Henrique Pereira dos Santos disse...

Henk,
1) Em primeiro lugar repito o que já fui dizendo por aqui várias vezes: a área ardida anual é um péssimo indicador da eficácia do dispositivo. Se em 2003 tivessem ardido 200 000 hectares significaria que o dispositivo tinha trabalhado muito bem e se no ano passado tivessem ardido 50 000 hectares significaria que o dispositivo era miserável.
2)Também estranhei o número de 77 mil hectares, que o notícia on line explica vir da boca do responsável pela proteccção civil, Gil Martins.
3)Agora as questões de fundo:
penso que concordas comigo que os fogos que temos dependem em grande parte de variáveis meteorológicas. Assim sendo, a utilização de séries temporais curtas traduz mais a influência dessas variáveis que outra coisa qualquer. Quando, como aconteceu em 2003, existe um ano meteorologicamente excepcional, o seu significado estatístico, sobretudo em séries curtas, é quase nulo: é um fenómeno isolado que não pode ser tratado estatisticamente. Por isso a mediana é mais útil que a média, porque estabelece o valor a partir do qual há mais anos acima e abaixo, sendo pouco contaminado pelos valores de anos excepcionais(por isso no primeiro post em que falei da mediana coloquei um gráfico que compara as duas).
Não percebi bem a tua argumentação sobre anos e médias, mas comparei num post as médias rolantes quando se usam cinco anos, dez anos e vinte anos como referência, exactamente para explicar como as séries curtas dependem essencialmente de anos excepcionais, o que traduz sobretudo as condições meteorológicas.
Ora o objectivo não é esse.
Não fui eu que mudei a média de cinco anos para dez, para incluir mais tempo o ano de 2003 no histórico. Eu não manipulo os dados para obter fundamentação para as minhas opiniões, o que tenho é criticado a forma como tem sido feita manipulação estatística para disfarçar o que é evidente: as variações dependem mais da meteorologia que do dispositivo, o que tem permitido que os recursos para o dispositivo tenha crescido de forma insensata com o argumento de que está a dar bom resultado.
O que é mentira.
Pode haver melhorias, não as nego, mas são marginais face ao peso da meteorologia e da acumulação de combustiveis no problema.
Por último, já fiz um post há algum tempo a perguntar exactamente se Portugal não deveria arder mais. Faço até umas contas de mercearia para defender que por volta dos anos 40 e 50 era bem provável que em Portugal ardessem pelo menos 250 000 hectares anuais sem qualquer alarme social.
Porque eram queimadas, não eram incêndios.
henrique pereira dos santos