quarta-feira, agosto 04, 2010

O erro das ignições

Com frequência a questão das ignições é considerada fulcral na gestão do fogo, com base numa falácia: se não houver ignições não há fogos.
O que é falacioso é pensar que será possível algum dia não haver ignições.
Esta falácia é muito ampliada por outra menos evidente: a ideia de que as ignições registadas pelo sistema de defesa da floresta contra incêndios (um nome completamente errado que é todo um programa ideológico) são as ignições que realmente ocorrem no território, o que está longe de ser verdade. Naturalmente só são registadas as ignições que ganham dimensão suficiente para serem registadas.
Por último, e como corolário, defende-se que diminuindo o número de ignições se diminui a área ardida, profissão de fé, totalmente assente num raciocínio lógico mas sem qualquer fundamento empírico.
Vejamos alguns dados.
Eu sei que o gráfico é complicado e é melhor clicar para ampliar. No essencial tem dois tipos de dados, referentes aos seis primeiros meses de 2000 a 2009: dois índices que inventei (fogachos sobre incêndios, que permite perceber em que anos há muitas ignições que são rapidamente extintas, e área ardida sobre o total de ignições, que põe em destaque o facto deste dado variar de 1 a 8, o que me parece demonstrar que não há razão nenhuma para acreditar que há uma relação directa entre o número de ignições e a área ardida) e área ardida total (dividi por cinco para não abafar vivualmente as variações do número de ignições total, que estão na mesma escala da direita do gráfico) e número total de ignições.
Para qualquer período de tempo que isto se faça é clara a falta de relação entre área ardida e número de ignições registadas. Ou melhor, existe uma relação muito mitigada, isto é, em anos especialmente benignos, como 2007, há uma diminuição tanto de ignições como de área ardida (e um aumento exponencial de fogachos face aos incêndios com mais de um hectare), mas nos anos em que arde mais área não há relação nenhuma com o número de ignições (2003 é o exemplo maior disso).
Se em vez de usarmos os dados de seis meses do ano usarmos os dados do ano total, eliminando os índices que inventei só para mostrar o que se passou em 2006, 2007 e 2008, o gráfico que compara áreas ardidas com ignições totais é ainda mais expressivo.
Em todo o seu esplendor 2006, 2007 e 2008 aparecem aqui na sua anormalidade climática. Antigamente eram usadas médias rolantes de cinco anos, mas dá muito jeito manter 2003 e 2005 nas médias do passado para poder fazer comparações sempre favoráveis, por isso a média rolante agora usada é de dez anos, mas discutir médias com séries tão curtas em fenómenos com uma variabilidade tão grande é simplesmente inútil. (já falei disso aqui e aqui)
A questão é ainda mais óbvia se em vez de usarmos o ano civil como referencial, usarmos tempos curtos que permitam olhar para os dias diferentes em cada ano.
Por exemplo, este ano, nos primeiros seis meses, houve 22 fogos que queimaram pelo menos 100 hectares. Esses 22 fogos são responsáveis por 58% da área ardida. Ou dito de outro modo, os outros 8 731 fogos são responsáveis por 42% da área ardida.
Qualquer gestor que tivesse o seu negócio assente na diminuição da área ardida estaria era preocupado em estudar estes 22 fogos e não em diminuir para um décimo os outros 8731 fogos. O argumento para não se fazer isto é que qualquer pequeno fogo se pode transformar num grande fogo.
Esta é a mais perigosa das falácias do nosso sistema de Defesa da Floresta Contra Incêndios. Pura e simplesmente isso não é verdade. Para que um fogo pequeno cresça é preciso que tenha condições para isso. Dos 22 grandes fogos, 19 ocorreram entre 20 e 31 de Julho, mas muito mais relevante, 10 foram no dia 26 de Julho, o mais típico dos dias de vento Leste, sendo que mais três foram no dia seguinte, 27, ou seja mais de metade dos grandes fogos dos primeiros meses do ano ocorreram em dois dias. Nesses dois dias, só nestes 13 grandes fogos, está mais de 45% da área ardida nos primeiros seis meses do ano.
O que têm esses dois dias de diferente dos outros?
Essa seria a pergunta normal de quem olhasse desapaixonadamente para o assunto.
Claro que esses dois dias (juntamente com 28, em que apesar de tudo se começou a conseguir fazer parar os fogos) têm o recorde de ignições registadas mas pretender que é esse número de ignições o problema é confundir causas com consequências: as razões pelas quais arde muito nesses dias e não se consegue parar o fogo são exactamente as mesmas razões pelas quais um número enorme de pequenas ignições que todos os dias existem se transformam em ignições suficientemente grandes para serem registadas.
A questão é mesmo muito simples de enunciar (mas muito difícil de resolver): com a quantidade de combustível acumulado, quaisquer meia dúzia de dias com as condições destes dois (ou se quiserem, com condições piores, isto é, condições mais típicas de vento Leste e vento mais forte, ou então com efeitos em áreas menos favoráveis ao combate, como é a fachada atlântica do Noroeste onde se fizeram nestes dias sentir os efeitos da meteorologia desfavorável aos fogos) rebentam com qualquer sistema de defesa da floresta contra incêndios.
Reparem como voltou a conversa dos incendiários, da falta de meios e por aí fora. Volta sempre nestes dias.
E no entanto o problema é outro e a sua solução está noutro lado.
Está na forma como se encara o mundo rural e o problema da acumulação de combustiveis.
A propósito, alguém ouviu o Sr. Ministro da Agricultura falar do assunto por estes dias? E explicar como o PRODER está a apoiar a gestão de combustiveis?
Estes dias têm sido pequenos avisos. Complicados, desagradáveis, mas pequenos avisos.
O sistema de defesa da floresta contra incêndios é completamente inútil quando verdadeiramente importa: quando dias especiais como o próximo sábado (a manterem-se das previsões) se prolongarem por mais de três dias vão morrer pessoas, vão destruir-se infra-estruturas, vai perder-se riqueza.
Não se vão perder grandes valores de conservação, mas perde-se confiança no Estado, o que é muito mais grave.
Pode não ser neste ano nem no próximo, mas pode dizer-se dos fogos imparáveis o que Jorge de Sena disse da morte "é de todos e virá".
Até lá haverá milhares de contos a procurar diminuir o número de foguinhos e fogachos que não valem um caracol, alguns dos quais mais valia que os deixassem fazer o trabalho de limpeza que a miopia política dos responsáveis não lhes permite compreender que nos beneficia a todos.
henrique pereira dos santos

6 comentários:

Lowlander disse...

Bom post. Foca de facto quais sao os factores de risco essenciais nos grandes incendios.
Ha estafa narrativa de que somos um pais de criminosos incendiarios e especialmente irritante.

Anónimo disse...

Caros

de facto cerca de 20000 ocorrências por ano em Portugal (em alguns anos), que superam a soma das ocorrências da Espanha, França, Itália e Grécia, nao deve significar nada sobre a atitude da nossa sociedade perante este flagelo....

acerca da pretensa "falácia" do "nao deixar arder" é preciso ter cuidado para nao cair em demagogia e intimidação quando se defende o deixa arder. Nesta altura do ano vir com discursos destes ("deixa arder") é uma irresponsabilidade e expressa bem o que é estar longe (ou viver longe) da realidade.

António Espinha Monteiro

Joaquim Sande Silva disse...

Mesmo sabendo que o autor do blog se "alimenta" das reacções aos posts quase sempre polémicos que escreve, não resisto a fazer um breve comentário.
As estatísticas sobre incêndios são estatísticas de extremos. Toda a gente sabe que bastam meia dúzia de fogos num ano para aumentar dramaticamente a área total queimada. Não era necessário este post para explicar isso. No entanto a questão do número de ignições é completamente incontornável a partir do momento em que se ultrapassa a capacidade de resposta do Sistema de Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios. Os grandes incêndios têm início nesses dias e por isso é um exercício inútil usar estatísticas anuais ou inter-anuais como faz o autor do post.
Se o caro autor tiver o cuidado de relacionar o número de ignições com o número de grandes incêndios (> 100ha) numa base diária, vai ver que a correlação é completamente diferente.
Joaquim Sande Silva

Anónimo disse...

e muitas outras contas se podiam fazer para confirmar que as ignições têm origem concreta (na sociedade portuguesa) e são determinadas na redução da área ardida, e por isso nao devem ser escamoteadas nesta discussão

António Espinha Monteiro

Henrique Pereira dos Santos disse...

Joaquim,
Estou de acordo contigo: fazer contas das ignições anuais e interanuais é um exercício inútil a que só me dediquei porque é uma afirmação recorrente na discussão fogos a identificação do número total de fogos como um problema a resolver através da lei e da educação ambiental. Fico portanto satisfeito que estejamos inteiramente de acordo nos factos sobre isso e na sua irrelevância para a discussão.
Sugiro que para além deste post leias todos os outros posteriores e anteriores em que discuto a questão como tu propões: numa base diária.
E mais uma vez estamos de acordo: nos dias dos grandes incêndios há muitos fogos registados no sistema.
Duas interpretações são possiveis: ou os portugueses têm dias em que lhes dá na cabeça desatar a semear fogos; ou há dias de condições meteorológicas especiais que permitem que pequenas ignições que durante a maior parte do ano não fazem diferença nenhuma, ganhem dimensões para ser registadas no sistema (como sabes o sistema não regista ignições, regista fogos).
Como a primeira hipótese é evidentemente absurda, voltamos à questão de base: que dias são esses, que características têm e como se gerem do ponto de vista dos fogos.
Aparentemente defendes que seja reprimindo comportamentos (pelo menos foi o que percebi de declarações tuas recentes). Eu não tenho nada contra isso. Acho até bem que se faça. Mas é uma razoável inurtilidade porque é uma impossibilidade material impedir todas as ignições no território (que não são 500 num dia, são milhares, das quais em dias normais umas 100 a 200 se transformam em fogos registados no sistema, e em dias excepcionais podem ser 500 a crescerem o suficiente para serem registadas no sistema.
Repara que estamos no domínio da fé: tu acreditas na capacidade repressora do Estado para que dez milhões de pessoas tenham um comportamento irrepreensivel quinze dias por ano, eu acredito que um país em que O Estado não consegue fazer cumprir o código da estrada é um país muito menos capaz de impôr o que pretendes em todo o território nacional ao mesmo tempo.
E nesses dias basta que escapem não quinhentas, mas 50 ignições para que o cenário de grandes fogos se repita, se não houver gestão de combustível.
É que nesses dias nem com um helicóptero por 100 hectares consegues travar um fogo que nos primeiros quinze minutos está transformado num fogo de copas com vários metros de frente.
António,
Venham de lá as contas que eu publico o que quiseres na matéria.
henrique pereira dos santos

Henrique Pereira dos Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.