segunda-feira, janeiro 30, 2012

Os fogos e os jornais

O gráfico acima ilustra a previsão que tinha feito sobre o aumento de fogos com a entrada deste tempo mais ou menos de vento Leste. Não é um Leste muito típico, o vento tem variações o que quer dizer que a situação meteorológica não está muito estabilizada como a que se associa ao vento Leste típico.
Mas ainda assim há, de um dia para o outro, um aumento de quase 100% no número de fogos diários. E a passagem de número de bombeiros em actividade de valores na casa dos 50 a 100, para números na ordem dos 200 a 250.
Os números absolutos continuam modestos (40 fogos diários) e não há alarme social com estes fogos. São por isso, compreensivelmente, fogos mediaticamente inexistentes.
Mas é pena.
É pena porque os factos descritos são exactamente os mesmos (salvaguardando-se a escala) que existem no Verão e que põem todos os jornais a falar de incendiários. Umas vezes são os jornalistas, eles mesmos, a falar de incendiários, outras vezes amplificam as declarações de terceiros. Mas, como é natural, dificilmente conseguiriam ouvir hoje pessoas a apontar os incendiários como responsáveis pelo aumento súbito de fogos diários em cerca de 100% de um dia para outro.
O que colocaria a questão de uma forma clara: se não são as acções dos incendiários que justificam a subida súbita de 100% no número de fogos diários agora, por que razão se deverá aceitar essa explicação no Verão? E se agora, sem dramas, se responsabilizariam as condições meteorológicas, por que razão se resiste a usar a mesma explicação no Verão, tendo em atenção que, ao contrário dos incendiários, essa explicação é válida nas duas circunstâncias?
Eu sei que os fogos são um assunto complexo e controverso. E sei que as minhas ideias sobre o assunto não são necessariamente as certas. Mas também sei que a repetição mediática dos mesmos clichés de ano para ano deve muito à falta de estudo do assunto por grande parte dos jornalistas que tratam o tema (e também à enorme massa de pessoas, de responsáveis autárquicos a comandantes de bombeiros, fora muitos outros, que falam do assunto com certezas resultantes da sua proximidade ao fenómeno, sem consciência de que há coisas que se percebem melhor dando dois passos atrás para ver o quadro inteiro).
Isso tem importância? Tem, e muita.
Trabalhando há anos em políticas públicas, como é sempre a política de conservação, sei perfeitamente que o rumo dessas políticas está estreitamente ligado à percepção pública dos problemas.
Se uma fraude como a da biomassa florestal a produzir electricidade para resolver os fogos (o que é fraude é considerar isso um instrumento útil de controlo de combustíveis, não é existir produção de electricidade a partir de biomassa em algumas circunstâncias) existe e subsiste anos seguidos é porque existe uma convicção generalizada de que queimar mato em centrais para produzir electricidade é uma boa ideia. Essa convicção generalizada leva, nas democracias, os partidos a adoptar políticas públicas que respondam a essa convicção favorável. Ora aqui entraria o papel dos jornais e dos jornalistas no escrutínio da coisa. Não é ouvir uns que pensam assim e outros que pensam assado e já está o contraditório feito. É mesmo ir à procura do que se chama "hard data", ou seja dos factos concretos, verificáveis. Uma vez fixado isto, então sim, ouvir opiniões diferentes sobre esses factos.
Os incendiários, a conversa da falta de meios de combate, a importância dos aviões, a falácia da rapidez do primeiro ataque (a falácia não está em considerar errado fazer tudo por tudo para diminuir o tempo entre o alerta e o primeiro ataque, a falácia está em considerar que é possível montar um sistema assente nessa ideia, financeiramente suportável e que funcione nos dias em que há 300 fogos num só dia), a ideia de que é tudo uma questão de ordenamento florestal, a infantilidade de pensar que se resolve alguma coisa aplicando multas aos proprietários que não limpam o mato e muito mais são clichés mediáticos sobre o assunto que ano após ano se repetem na época de fogos. Enquanto um fenómeno interessante como os fogos de Inverno, que ajudam a fazer uma ideia mais clara do assunto que todos esses clichés, pura e simplesmente não existe mediaticamente.
Tudo isso concorre para as políticas erradas de gestão do fogo. Longe de mim dizer que essas políticas erradas são da responsabilidade dos jornalistas que não as escrutinam convenientemente, evidentemente não são, são da responsabilidade de quem as define e executa.
Mas um quarto poder muito centrado em questões formais, em fogos fátuos, em coisas espectaculares e em sensações, em detrimento do trabalho de escrutínio de fundo, ajuda a que essas políticas se mantenham, nos gastem os recursos e não apresentem resultados.
E é pena. Para além de nos ficar caro.
Grande parte do meu interesse em perceber como funcionam os jornais e se produzem as notícias vem daqui, da noção de como as suas fragilidades (que são as nossas, como sociedade) torna a vida tão fácil a quem define e executa más políticas públicas.
henrique pereira dos santos

7 comentários:

Anónimo disse...

Estava a ler no fórum meteoptcom.com que com esta entrada fria e seca siberiana há riscos de uma "geada negra" nas próximas noites. No site do Instituto de Meteorologia, referem na secção didáctica como medida preventiva regar as culturas. Estou um pouco preocupado com o assunto, e faz-me um pouco de confusão. Regar as culturas não há o risco de estarmos a gerar mais gelo que também pode ser nocivo? Se alguém tiver conhecimentos sobre o assunto, agradecia uma ajuda.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Tem razão na dúvida. Uma coisa é água em movimento (é essa a função da água que escorre no inverno nos prados de lima, criar uma lâmina de água em movimento que dificulta a congelação, outra coisa é água parada. Se for para regar por aspersão e ficarem umas gotículas, o risco aumenta. Mas se for para regar no momento em que se está a formar a geada (isto é, ao longo da noite, em especial a partir do meio da noite, mas depende das temperaturas junto ao solo) então a entrada mais ou menos permanente de água acima de zero graus tem um efeito de combate à geada. A água parada, se tiver profundidade suficiente, pode também conferir protecção às culturas, mas o risco é maior que com a água em movimento. Tudo o que sirva para aumentar e manter a temperatura ao nível do solo acima de 0 graus, ajuda, mas não é fácil se não se tiver um prado de lima ou uma estufa ou se não forem coisas muito localizadas.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Caro HPS, há quem trabalhe no campo no inverno e tenha como costume acender pequenos fogos para se ir aquecendo ou para aquecer o almoço (os pastores têm muito este hábito, mas trabalhadores agrícolas ou de obras de construção também) além de que se efectuam queimadas de material no inverno com maior frequência do que noutras alturas do ano.
Em dias de vento Leste, será mais fácil perder o controlo e poderá ser uma explicação para o aumento de número de fogos?

Henrique Pereira dos Santos disse...

A minha hipótese é a de que ignições há muitas, por muitas razões, digamos que o território está saturado de ignições. Na maior parte do tempo isso não tem grande importância, em condições especiais uma ínfima parte dessas ignições dão origem a fogos. Especificamente a sua hipótese pode explicar o aumento de fogos em dias de vento Leste no Inverno, que são efectivamente mais frios (como se vê por estes dias e se verá amanhã, se a previsão estiver certa) mas não explica os fogos em dias de vento Leste no Verão (que são dias de canícula homérica, ninguém acende fogos para se aquecer).

Anónimo disse...

Caro HPS,
penso que nos dias quentes e secos de Verão, fontes de ignição como cigarros mal apagados,têm maior probabilidade de originar focos de incêndio do que no inverno, porque mesmo num inverno seco, as plantas sempre retêm maior humidade. Penso que em diferentes períodos do ano, diferentes fontes de ignição podem ter pesos diferentes.
Cumprimentos,
AC

Henk Feith disse...

Caro ánónimo das geadas,

A água protege de facto das culturas, mesmo quando parada. Em noites de maior humidade, a geada forma-se sobre a condençasão que se forma nas plantas, dando-lhe o conhecido aspeto esbranquiçado. Essa película de gelo acaba por proteger o tecido vegetal, evitando que o líquido no interior das células congela, provocanda a ruptura das paredes celulares e consequente morte dos tecidos.
A geada negra, por ausência de água em forma de gelo no exterior das plantas, proporciona temperaturas mais baixas nos tecidos, provocando danos muito superiores. Quando a ausência de humidade no ar se associa a vento, com maior evapotranspiração, então o efeito é ainda maior (wind chill factor). Aí a razão que se fala nos paises nórdicos da temperatura real e a temperatura "sentida".
Outro dia discuti com colegas a origem do termo "geada negra", e foram sugeridas várias explicações. A primeira prende-se com a ausência do orvalho congelado, logo a ausência do aspeto esbranquiçado da vegetação. Outra seria que a geada negra resulta num aspeto negro da vegetação atingida em resultado da geada forte. Por fim, aí já mais simbólico, devido ao prejuízo daquelas geadas, associar o fenómeno ao "negro" no sentido do lado do mal do mundo.

Henk Feith

Anónimo disse...

Obrigado pelas respostas, improvisei um pouco, coloquei palha sobre uma data de couves jovens que tinha plantado em Dezembro. E molhei a palha ao anoitecer. Espero que esteja a resultar.