quinta-feira, novembro 12, 2009

Informação e conservação


A partir deste post achei que valia a pena fazer uma série de posts temáticos, dos quais já fiz dois, faltando dois: um sobre informação e conservação, que é este, e outro sobre o que é uma ONG, que fica para quando puder ser.
Já por várias vezes escrevi sobre informação e conservação, defendendo a tese de que a informação de conservação é voluntária e conscientemente distorcida para obter decisões políticas consideradas favoráveis à conservação dos valores de biodiversidade.
Neste post, neste outro, e ainda este último, estão exemplos da minha posição de algum cepticismo em relação à adopção do que é produzido pelo processo científico como verdade inquestionável.
Para este post pareceu-me que valia a pena trazer um exemplo recente.
Se lerem este estudo verão os mecanismos de manipulação da informação a trabalhar a favor da conservação, na opinião dos manipuladores, claro.
Uma das principais conclusões do estudo é preocupante: "Our results represent a qualitative warning exercise showing how very low reductions in survival of territorial and non-territorial birds associated with wind-farms can strongly impact population viability of long-lived species."
Repare-se que não se está perante um panfleto de uma ONG contrária à energia eólica (que as há) mas sim perante um artigo científico publicado na revista "Biological Conservation", publicada pela Elsevier e com peer review. Merece pois toda a credibilidade.
Só que ao olhar para o corpo do artigo verificamos que:

1) o que se fez foi avaliar a mortalidade em parques eólicos numa região de Espanha e extrapolar para todo o país. Pese embora o facto da região avaliada ser razoavelmente grande, convém notar que inclui o estreito de Gibraltar, ou seja, uma das principais rotas migratórias e o principal ponto de concentração da rota migratória a oeste da Europa. Ou seja, extrapolar dados desta região para toda a Espanha, sem qualquer correcção ou anotação (que eu tenha visto) é discutível;
2) conhecendo a população da região avaliada e a mortalidade registada, é calculada uma taxa de mortalidade não natural. Não discutindo sequer o facto de ser também discutível que a taxa de mortalidade não esteja empolada por se tratar da tal rota migratória, o mais interessante (e muito, muito comum em estudos sobre mortalidade em infra-estruturas) é considerar-se que esta taxa de mortalidade se soma à mortalidade natural. Isto é, em relação a todas as outras causas de mortalidade a teoria diz que os menos aptos (seja por que razão for) morrem mais e mais cedo que os outros, mas em relação às infra-estruturas consideramos que essa menor aptidão é irrelevante para a mortalidade verificada e, pelo contrário, só se exerce sobre os que na natureza não morreriam mais cedo por serem menos aptos (desculpem o parágrafo hermético mas não consigo explicar isto de forma simples);
3) na posse de uma mortalidade que se considera (sem qualquer suporte na teoria ou empírico) que se soma integralmente à mortalidade natural, põe-se um modelo a correr que avalia tendências de longo prazo, sem qualquer consideração pelas principais tendências que hoje afectam a dinâmica da espécie já que se considera que no longo prazo tudo se mantém, com excepção da mortalidade acrescida trazida pelos parques eólicos;
4) curiosamente não se faz uma coisa que pareceria óbvia: comparar a evolução da população da espécie em paralelo com a expansão dos parques eólicos (já tive várias discussões sobre esta questão, quando percebi que a mortalidade apreciável de abetardas numa linha eléctrica instalada há dez anos, que nestes modelos previsionais levaria à extinção da população num determinado prazo, era coincidente com um crescimento de 50% na população afectada desde a instalação da tal linha eléctrica). Se o fizessem concluiriam que a espécie teve decréscimos muitos grandes, em consequência da diminuição da disponibilidade alimentar e dos venenos, mas que nos últimos anos essa tendência no mínimo se suavizou (há quem escreva que se inverteu) quer com o controlo dos venenos, quer com medidas simples de instalação de alimentadores, com impactos muitos mais significativos que o pequeno acréscimo de mortalidade verificado com os parques eólicos (admitindo que os bichos que morrem nos parques eólicos não são os que por qualquer razão tenderão a morrer mais cedo na natureza, o que não está provado nem sequer indiciado).
Faz-me lembrar o meu quarto de hora de discussão com o responsável pela primeira avaliação do estatuto a chioglossa em Portugal, na altura em que fez a apresentação do estudo. Eu tinha responsabilidades no ICNB que me obrigavam a fazer opções na afectação de recursos para a conservação e por isso perguntei, por não ter pecebido na apresentação, se a espécie estava ameaçada ou não e em que grau. Foi-me respondido que se tratava de endemismo ibérico sobre a conservação do qual teríamos especiais responsabilidades. Insisti que isso eu já tinha percebido mas queria perceber era o grau de ameaça. Foi-me respondido que os endemismos, por terem áreas de distribuição limitadas, eram mais sensiveis a factores de perturbação que se exercessem sobre essa área, etc.. Insisti que essa parte tinha percebido, o que queria era saber qual era o estatuto de ameaça da espécie. E estivemos nisto um quarto de hora antes que o investigador resolvesse finalmente dizer que a espécie não estava (como não está) ameaçada.
A verdade é que existe uma enorme complacência perante a informação científica que suporta políticas de conservação, ao contrário da informação que aponta para menores ameaças, que é duramente escrutinada, na sua substância, nos métodos, nos pressupostos adoptados, nas origens dos seus financiamentos e mesmo no posicionamento político dos seus autores.
henrique pereira dos santos

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