segunda-feira, maio 29, 2006

O ilegítimo negócio do caos

[Foi publicada esta semana no semanário regional das Beiras "Campeão das Províncias" uma longa entrevista que me dirigiram a propósito do urbanismo, ordenamento do território e políticas de solos. Transcrevo para os interessados a generalidade do que foi publicado, sob a forma original e não-editada da entrevista.]


Campeão das Províncias – Como é que, com a sua formação académica, passou a prestar atenção às questões do urbanismo?

Pedro Bingre do Amaral- A minha formação académica abrange dois temas razoavelmente interligados: o ambiente, ao nível de licenciatura, e o ordenamento do território, ao nível de mestrado. Enquanto docente do ensino superior público tenho leccionado disciplinas relacionadas com ambos os temas. Uma das minhas áreas de estudo e de intervenção não tem sido tanto o urbanismo no sentido estrito (o desenho de malhas urbanas), mas sim a política de solos, isto é, a definição política dos direitos e dos deveres associados à posse do solo e as competências do Estado nessa regulação. A superabundância de planos urbanísticos em Portugal de nada serve enquanto a política de solos não for clarificada e modernizada.


CP – Tem dito que o caos urbanístico alastrou através do país ao abrigo da legislação...

PB- Sim, digo e repito. Em Portugal, os diplomas básicos que enquadram a propriedade do solo –a Constituição e o Código Civil- omitem a questão dos direitos de edificar, de lotear e de urbanizar, dando azo a interpretações ao sabor das conveniências. Nos países desenvolvidos, pelo contrário, tomou-se o cuidado de assegurar que a Constituição declare que compete ao Estado, e só ao Estado, promover a expansão urbana e sobretudo colher as mais-valias daí resultantes. Nesses países também se verifica que o Código Civil não deixa em aberto que a posse de um solo confira o direito de edificar e urbanizar. No nosso país demasiados direitos são deixados a interpretações casuísticas.
A posse pública das mais-valias urbanísticas é uma pré-condição fundamental para o urbanismo moderno. Deveria estar consagrada na Constituição e ser amplamente tratada na legislação subordinada, por ser um pressuposto básico sem o qual pura e simplesmente não é possível travar o caos urbanístico de raiz especulativa. Além disso, fazem também falta Leis que assegurem a fluidez do mercado imobiliário rústico e urbano, e desincentivem a especulação e o abandono.
É certo que existem abundantes diplomas legais para tutelar o urbanismo no sentido estrito: desde o DL 380/99 (Planos de Ordenamento do Território) ao RGEU (Regulamento Geral de Edificações Urbanas), passando por tantos outros. Porém, como à partida a Constituição e o Código Civil deixam implicitamente em aberto o direito de todo e cada proprietário edificar, lotear ou urbanizar o seu terreno, e como não existem mecanismos que punam o açambarcamento especulativo de imóveis devolutos, a legislação urbanística serve apenas para nos reconfortar com a ideia de que “está tudo legal”. E é verdade: está tudo legal – e feio, e disfuncional, e imoral. Se há leis injustas e daninhas em Portugal, são as leis urbanísticas. A paisagem de Coimbra está a ser assassinada há quarenta anos por urbanizações horrendas, vendidas a preços elevadíssimos resultantes de conluios especulativos, tudo isto dentro da maior legalidade. Uma legalidade podre.


CP – Como se trava o afã de lotear terrenos?

PB- Os proprietários têm interesse em lotear os seus terrenos apenas e exclusivamente para enriquecer de modo instantâneo às custas da apropriação das mais-valias urbanísticas. Quanto mais denso for o loteamento, mais enriquecem. Se a Lei consagrasse a retenção pública das mais-valias da mesma maneira que se faz no resto da Europa do Norte, esse interesse desapareceria e com ele cessaria a proliferação loteamentos particulares.
Permita-me que defina claramente o que é lotear. Lotear é o acto jurídico-administrativo mediante o qual um solo rústico é convertido em solo urbanizável, sendo para isso dividido em vários lotes edificáveis acessíveis por uma fracção do solo que transita para a posse pública. Um exemplo típico seria um hectare de terreno agrícola (100x100m2, ou seja, 10.000m2) que é dividido em 20 lotes de 300m2, cada qual apto a receber um edifício, sobrando 4000m2 de para acessos públicos. Esta divisão é um acto meramente jurídico-administrativo: não implica a construção de quaisquer infraestruturas por parte do loteador.
Ora, porque motivo existe tanto afã de lotear terrenos? Porque o acto de lotear um terreno multiplica o seu valor centenas de vezes, e o proprietário enriquece instantaneamente sem trabalho nem risco.
No Algarve, por exemplo, um hectare de pinhal à beira-mar, sem qualquer alvará de loteamento, vale apenas em função da madeira que produz – e portanto estará cotado a menos de 800 contos por hectare. Se receber um alvará de loteamento como o acima exemplificado, pode ser imediatamente vendido por quase um milhão de contos a alguém que o queira edificar...
Em Coimbra os valores também são bastante elevados. Imaginemos um terreno no planalto de Santa Clara. Enquanto não receber alvará de loteamento, o seu valor depende apenas da produtividade agrícola – fruticultura ou horticultura, por exemplo- e não vai além dos 2.000 contos por hectare. Se receber um alvará de loteamento que permita a criação de 20 lotes para habitação colectiva (vulgo “prédios de apartamentos”), cada hectare facilmente se cotiza acima dos 600.000 contos... Ou seja, com um mero alvará, o cidadão que possua esses terrenos enriquece sem trabalho à custa da necessidade alheia de espaço para habitar; e o Estado aplaude esta injustiça.
A esta diferença de preço antes e depois da emissão do alvará de loteamento dá-se o nome de mais-valia urbanística. Todas as doutrinas de economia política, e todas as ideologias desde a esquerda mais radical à direita mais conservadora, consideram ilegítimo que esse rendimento reverta para o proprietário do terreno loteado, pois não se trata nem de um juro, nem de um lucro, nem de um salário – as únicas formas legítimas de obter rendimentos. Trata-se de um rendimento súbito sem causa válida, resultante do privilégio concedido pelo Estado sobre o gozo de uma renda derivada de um recurso natural de oferta fixa: o solo edificável. Por isso, todos os países civilizados –excepto o nosso- têm leis que não permitem a nenhum particular ganhar dinheiro por via de alvarás de loteamento.
Existem duas vias para assegurar a retenção pública das mais-valias: ou a solução pública em que lotear terrenos passa a ser apanágio exclusivo do Estado (só os terrenos públicos podem ser loteados); ou a solução mista público-privada, menos eficiente, em o Estado cobra uma taxa próxima dos 100% à valorização dos terrenos particulares que tenham sido loteados.


CP – De uma entrevista concedida pelo anterior vice-presidente da Câmara do Porto concluí que as leis urbanísticas são permissivas e que «quem tem unhas é que toca viola»...

PB- É verdade, é absoluta verdade. As Leis principais oferecem aos promotores imobiliários o ouro público, enquanto as Leis subordinadas servem apenas para disfarçar essa oferta com procedimentos técnico-administrativos que só ajudam ao caos urbanístico que vemos.
A Constituição e o Código Civil deixam em aberto as faculdades privadas de edificar, lotear e urbanizar, e portanto criam e legitimam a possibilidade de os particulares facturarem fortunas por meio de loteamentos. Além disso, como não existem nenhuns mecanismos tributários nem penais que desincentivem ou combatam a especulação imobiliária (quer urbana, quer rústica), é muito rentável açambarcar imóveis, mantendo-os devolutos, para gerar uma escassez artificial da oferta e chantagear a procura pedindo altos preços para venda.
Perante estes pressupostos fundamentais, a legislação urbanística subordinada limita-se a criar uns entraves pro forma aos loteamentos e à especulação – criando a ilusão teatral de que se está a planear em função do “bem comum” e que “os planos de ordenamento asseguram o direito à habitação e à qualidade de vida”, quando na verdade servem apenas para distinguir entre quem vai e quem não vai colher mais-valias.
Ora, é sintomático o facto de que, ao contrário do que se pratica em todo o Ocidente, nenhum destes planos apresenta ao público uma análise económica dos valores do imobiliário antes e depois da sua promulgação; por outras palavras, impactos financeiros causam esses planos. Quais os terrenos que se valorizam? E em quanto? Os planos de ordenamento nada esclarecem sobre isto, como se o dinheiro não importasse. Mas é o que mais importa, como sabemos. Esta falta de transparência é tudo menos inocente.
Vejamos o caso dos Planos Directores Municipais. Os PDMs definem à partida quais terrenos serão “agro-florestais” e quais serão “urbanizáveis”. Em Coimbra, isto equivale a dizer que o PDM decide quais os terrenos que valerão 600 mil contos por hectare, e quais valerão uns meros 2 mil. Uns proprietários receberão mais-valias urbanísticas, outros não. Tendo em conta o seu valor, estas mais-valias equivalem a autênticas lotarias produzidas pela administração pública – só que neste caso, ao contrário das lotarias, quem compra a cautela (o lote) não se habilita a receber o prémio (as mais-valias), pois quem o ganha é o cauteleiro (o loteador).
É evidente que muitos proprietários cujos terrenos não tenham sido classificados de “urbanizáveis” se sentirão desolados por perderem a oportunidade de facturar pequenas fortunas sem trabalho nem risco. Por isso, hão-de recorrer a todas as pressões possíveis sobre o aparelho politico e administrativo para que os seus terrenos recebam alvará de loteamento. Estão reunidas todas as condições para que prosperem as trocas de favores milionários.
Para viabilizar o loteamento de um terreno à partida dado como não-urbanizável, a Lei oferece mil e um mecanismos: desafectações de RAN e de REN, revisões ou suspensões (totais ou parciais) de PDM, declarações de Projectos de Interesse Nacional (PIN), Unidades de Intervenção, as contrapartidas... Há inúmeros escritórios de advocacia especializados neste género de processos. E compensam: o alvará de loteamento rende, e bem: sobeja o dinheiro para cobrir todas as despesas de tramitação.


CP – Em Portugal é legal aquilo que noutros países configura crime económico?

PB- Sim, a apropriação de mais-valias urbanísticas tal como se passa em Portugal configuraria no resto da Europa e dos estados ocidentais, em maior ou menor grau, um crime económico da categoria de “rent-seeking activity” ou “directly unproductive activities”, na medida em que os alvarás de loteamento são meros actos administrativos do Estado que enriquecem certos cidadãos em detrimentos de outros, sem que os primeiros prestem qualquer contrapartida económica válida e proporcional aos segundos.
“Rent-seeking” ou apropriação de rendas é o processo mediante o qual um indivíduo ou uma empresa procura obter rendimentos através da manipulação (política, administrativa, jurídica) do ambiente económico em lugar de os obter através do comércio livre ou da produção de valor acrescentado. A apropriação de rendas é geralmente feita através da extorsão mais ou menos subtil de dinheiro a outras pessoas ou empresas, a coberto de regulamentações governamentais que prejudicam os consumidores em proveito dos supostos “fornecedores”. A apropriação de rendas é uma actividade económica directamente improdutiva porque permite obter rendimentos imediatos sem contrapartidas em termos de produtividade.
Os recursos naturais escassos e essenciais, como o solo, a água, o petróleo e os minerais são alvo preferencial destas actividades. A concessão de monopólios ou oligopólios sobre o espectro electromagnético –as licenças de radiodifusão- também são alvos favoritos destas actividades. Concentremo-nos, porém, no caso do solo, e vejamos a doutrina que vigora em teoria e na prática entre os países ocidentais, desde a Suécia aos Estados Unidos.


CP – Qual deve ser a intervenção do Estado sobre as mais-valias urbanísticas?

PB- O Estado deve assegurar que seja respeitado o princípio de indiferença dos proprietários face aos planos urbanísticos. Por outras palavras: deve garantir que nenhum particular ganha ou perde receitas devido à mera promulgação ou alteração planos de ordenamento do território. Assim se faz nos países desenvolvidos e civilizados.
Sempre que um POT é promulgado, os solos que por sua via passaram a urbanizáveis valorizam-se, enquanto aqueles que passam a integrar áreas non-aedificandi desvalorizam-se. Uns gozam mais-valias e outros sofrem menos-valias, por força de actos administrativos que nada têm a ver com o mérito de cada um. Por isso é da mais elementar justiça que as mais-valias sejam ser cobradas pelo Estado aos particulares beneficiados, e as menos-valias ressarcidas aos proprietários prejudicados.
Para além disso, o Estado deve assegurar que existe igualdade de oportunidades no acesso ao solo enquanto recurso natural escasso, criado pela Natureza e não pelo Homem, e essencial à vida. Desengane-se quem pensa que esta afirmação se pauta por uma qualquer cartilha extremista à esquerda ou à direita: encontra-se inscrita na Lei de todos os países democráticos economicamente desenvolvidos.
Ao contrário dos valores correntes, cuja oferta pode ser aumentada por via fabril, a oferta de solo à face da terra é limitada, absolutamente rígida. Ninguém a produziu e ninguém a pode produzir. Por isso, nos países desenvolvidos a posse do solo implica o pagamento de uma “taxa moderadora” proporcional ao seu valor de mercado, independentemente dos rendimentos do proprietário, de modo a repor por meio da justiça redistributiva a evidente desigualdade de oportunidades no acesso à terra. No Estados Unidos, por exemplo, essa taxa equivale a 4% do valor venal do solo, de modo incitar os proprietários absentistas a vender os seus terrenos a quem lhes queira dar uso efectivo.
O solo é, adicionalmente, um factor de produção: a sua posse permite a criação de riqueza, em maior ou menor grau, por meio da lavoura, da floresta, &c. A posse de um imóvel implica obrigações mínimas de aproveitamento, sejam habitacionais, sejam laborais, sejam agrícolas ou silvícolas. Por isso, nos países desenvolvidos o não-uso dos imóveis acarreta um pagamento de sanções. Em França, Países Baixos, Escandinávia, &c, o Estado adquire coercivamente por baixo preço todos os imóveis que não estejam a receber o uso devido. A racionalidade por detrás deste raciocínio é clara: quem desperdiça a sua parcela do território, mantendo-o sem uso, prejudica a produtividade económica de todo o país.
Finalmente, o solo é um valor essencial à sobrevivência: podemos sobreviver sem Ferraris, mas não sobrevivemos sem um espaço onde habitar e trabalhar. Quem açambarca Ferraris não prejudica senão os cidadãos que desejam ter essas viaturas; quem açambarca o solo prejudica a todos directa ou indirectamente. Compete ao Estado proporcionar a todos as condições mínimas necessárias para a vida; especular sobre os solos equivale a especular sobre outros valores naturais vitais como a água. Imagine o que aconteceria se o Estado concedesse a uns poucos particulares todos os rios e nascentes, e lhes permitisse o açambarcamento da água por um tempo indefinido? Algo semelhante se passa com o solo em Portugal.
Por tudo isto, a legislação moderna dos países civilizados entende que deve existir uma diferença radical entre os direitos de propriedade privada móvel e os direitos de propriedade imóvel: estes últimos devem excluir liminarmente o açambarcamento especulativo de imóveis derrelictos urbanos ou rústicos.
Ao contrário do que possa parecer, esta política de solos respeita profundamente a propriedade privada e favorece muito os empresários particulares que se entreguem a legítimas actividades económicas. Por isso é esta a política de solos que orienta as diversas legislações sobre o imobiliário, desde os Estados Unidos da América ao Reino da Suécia, apesar de todas as divergências ideológicas que separam os governos daquelas nações. O que esta política não tolera são as “rent seeking activities” ligadas à especulação sobre o solo. Os seus princípios reúnem consenso em quadrantes políticos tão díspares como os liberais, os sociais-democratas, os socialistas e os comunistas.
Dentro de Portugal a política de solos tem sido sistematicamente tratada como um fait-divers, desleixo que traz grande proveito para alguns poucos e desgraça para todo o restante país. A nossa política de solos é tão tosca e incipiente quanto o caos urbanístico que gerou. Pior: fez da desordem urbanística um negócio chorudo.


CP – Julgo tê-lo ouvido dizer que, em Coimbra, por cada hectare urbanizável à mercê de um acto administrativo, o respectivo proprietário ganha instantaneamente cerca de dois milhões de euros...

PB- Façamos as contas. Um hectare de terrenos estritamente agro-florestais, isto é, impedidos pelos planos de ordenamento de receberem edificações ou loteamentos, tem um valor dependente da rentabilidade agrícola; sendo assim, o seu preço de mercado terá muita dificuldade em subir acima dos 10.000 €. Quem compra terrenos agrícolas acima desse preço decerto não pretende recuperar o investimento por meio da lavoura, pois é difícil que consiga ter lucro suficiente com o cultivo.
Imaginemos, em contrapartida, que esse terreno recebe alvará de loteamento. Um hectare, 100x100 metros, permite criar por exemplo 20 lotes de 300m2 para moradias unifamiliares, sobrando 4.000 m2 em “cedências” para infra-estruturas públicas, como estradas. Em Santa Clara, em São Martinho, ou no vale de Castelo Viegas, cada um destes lotes, sem qualquer infra-estrutura, chega a ser vendido a 100.000 €. Sem ter recebido qualquer benfeitoria, e graças a um simples alvará, o terreno com os seus lotes passa a valer duzentas vezes mais (2 milhões de euros), sem que isso resulte do esforço ou do mérito económico do loteador.
Se, em lugar de moradias unifamiliares, esses lotes tivessem licença de construção de edifícios de habitação colectiva, com vários apartamentos, o mesmo terreno poderia valorizar-se além dos 3 milhões de euros.


CP – Defende que as operações de loteamento tenham exclusivamente carácter público? Porquê?

PB- Porque só conseguiremos assegurar a posse pública das mais-valias urbanísticas se os loteamentos forem uma prerrogativa exclusiva do Estado. Os países do Centro e Norte da Europa sabem-no e por isso não admitem qualquer loteamento privado nos moldes em que por cá se fazem. Outra alternativa, o sistema misto de loteamentos público-privados com taxação de mais-valias, tem produzido demasiados casos de corrupção nas poucas regiões em que é praticado: Levante espanhol e Mezzogiorno italiano. Entre nós, pior ainda: o sistema tem sido 100% privado e nem sequer contempla a taxação de mais-valias: é fartar, vilanagem.
Os loteamentos públicos têm ainda a vantagem de assegurar que o processo de urbanização é feito nos tempos, quantidades e qualidades que mais interessam ao interesse do colectivo, ao invés do actual sistema que só maximiza o lucro especulativo, o açambarcamento de lotes devolutos, e a péssima qualidade de edifícios e infra-estruturas. No sistema urbanístico actual, não compensa produzir edifícios de boa qualidade em ruas bem infra-estruturadas: todo o rendimento depende da localização e da densidade da urbanização. A qualidade não importa.


CP – Costuma fazer a destrinça entre as diversas etapas da urbanização: lotear, infra-estruturar e edificar...

PB- São operações económica, jurídica e materialmente muito distintas.
Lotear é o acto jurídico-administrativo mediante o qual um terreno agro-florestal passa à categoria de urbano, é retalhado em vários lotes edificáveis (cada qual podendo ser vendido separadamente), sendo afectada uma “área de cedência” ao público para a eventual construção de acessos e equipamentos colectivos. É no acto de lotear que se facturam as mais-valias urbanísticas.
Infra-estruturar é o acto administrativo e técnico de dotar materialmente os lotes de acessos e equipamentos. No sistema actual, os urbanizadores privados procuram poupar o máximo que podem nesta etapa, donde resultam péssimas estradas, calçadas, jardins, &c.
Edificar é o acto privado de construir os edifícios previstos em cada lote, em função dos índices previstos.
Nos países desenvolvidos, lotear é um empreendimento público, infraestruturar é uma empreitada de obras públicas sujeita a concurso, e edificar é uma empreitada privada. Além disso, para evitar açambarcamentos especulativos, são multados os lotes e os edifícios devolutos, para garantir que os edifícios sejam rapidamente construídos e habitados.


CP – Na sua perspectiva, os planos de ordenamento do território (independentemente do seu âmbito) podem ter carácter discriminatório?

PB- São profundamente discriminatórios, sempre. Em abstracto, porque permitem que uns poucos cidadãos gozem de um “enriquecimento sem causa”, à custa do colectivo. Em concreto e numa escala menor, porque tratam de forma grosseiramente desigual os proprietários de terrenos contíguos.
Imagine-se, a título de exemplo, que é promulgado um Plano de Ordenamento do Território sobre um município onde existe uma acentuada procura de habitação a par de uma moderada procura de terrenos para o exercício da agricultura, como tantos da faixa litoral entre Setúbal e Braga. À partida, os empresários agrícolas encontram-se dispostos a adquirir terrenos para cultivo por um valor máximo de 10.000 € por hectare, montante acima do qual a aquisição condenaria à insolvência os seus empreendimentos agrícolas. Os empresários da construção civil, em contrapartida, estão dispostos a adquirir quaisquer terrenos loteados por 2.000.000 € por hectare.
Entra então em vigor um novo Plano de Ordenamento do Território que passa a estabelecer quatro categorias de uso do solo, além das manchas de uso urbano já consolidadas: urbanizável, agrícola e reserva natural integral. Como resultado, verifica-se que:
• Os proprietários de solos agrícolas entretanto classificados pelo POT como agrícolas vêem o seu património manter o valor de mercado que já detinha;
• Os proprietários de solos agrícolas reclassificados como “urbanizáveis” e loteados vêem os seus terrenos valorizarem-se a 20.000%.
• Os proprietários de solos agrícolas reclassificados como “reserva natural integral” vêem os seus terrenos perderem qualquer valor de mercado e todo o valor de uso.
Estamos, pois, perante um exemplo extremo do carácter discriminatório do plano de ordenamento, que viola o princípio da igualdade de tratamento do Estado a todos os cidadãos. Uns proprietários ganharam uma “fortuna trazida pelo vento”, outros ficaram indiferentes, outros ainda foram virtualmente expropriados. Quem quiser comprar um lote para construir habitação vai ter de sujeitar-se a uma autêntica extorsão por parte dos loteadores, com o beneplácito da Administração Pública, da polícia, &c. Toda esta iniquidade é legitimada pela nossa legislação actual.
O mecanismo das perequações actualmente em vigor não resolve este problema, antes o torna mais sinistro. Na prática, os “perímetros urbanizáveis” dos PDMs geram oligopólios do mercado de solos, e as perequações mais não fazem do que obrigar à cartelização, ao conluio, dos oligopolistas imobiliários.


CP – Há municípios cujos planos directores (PDM’s) são frequentemente suspensos para dar lugar a planos de pormenor. Que é que explica tantas excepções aos planos directores municipais?

PB- Para começar, muito é suspeito que um instrumento administrativo capaz de oferecer ou sonegar fortunas “trazidas pelo vento” possa ser suspenso com tanta facilidade. Sempre que há uma suspensão, há um novo loteamento que o PDM original não previa. Sempre que há um novo loteamento nasce um novo milionário ou enriquece ainda mais algum que já o era, sem que faça por merecer essa benesse graças a esforços económica e moralmente legítimos.
As suspensões dos PDM são de uma desonestidade intelectual tão básica que se não causassem tanta indignação, mereceriam apenas irrisão e perpétua vergonha. Como se pode, de consciência limpa, suspender um PDM, violar substancialmente as disposições que continha, e depois de perpetrados os actos, repor formalmente em vigor o plano violado? A quem pretende convencer manobra tão torpe?


CP – Consta que a elaboração de alguns planos de pormenor cai em mãos que dão mais garantias de os mesmos serem aprovados...

PB- Podemos considerar “corrupção” o acto em que um agente da Administração Pública, em troca de recompensas em dinheiro ou em géneros, discrimina favoravelmente um cidadão em detrimento dos demais, permitindo-lhe obter rendimentos que não resultam do seu esforço económico pois são simplesmente substraídos ao colectivo.
Não me pronuncio sobre a existência de corrupção no urbanismo português. Sei apenas que metade das condições estão reunidas: com esta legislação, todos os dias existem agentes da Administração Pública a discriminar favoravelmente uns cidadãos em detrimento dos demais, permitindo a esses poucos obter rendimentos que não resultam do seu esforço económico pois são simplesmente subtraídos ao rendimento colectivo. Tudo dentro da mais estranha legalidade.
Talvez comecemos a ter uma noção mais clara da realidade quando se publicar uma estatística com as percentagens de políticos profissionais proprietários de promotoras imobiliárias. E se publiquem, para todo e cada alvará, os nomes dos emissores, os nomes dos receptores, e o dinheiro que foi arrecadado em mais-valias por esse meio.


CP – Pode haver situações em que uma suspensão tem o alcance de uma violação?

PB- Desde o período barroco que Portugal se deleita com jogos de palavras ao estilo conceptista. Confunde-se obscuridade com profundidade, eloquência com inteligência.
Isto é particularmente válido no campo jurídico. Sobeja-nos em verborreia o que nos falta em eficácia e seriedade. Em tudo o que envolva legislação, por exemplo, está bastante disseminado o gosto por jogar com a distinção entre o “plano formal” e o “plano substancial”. Isto oferece mil-e-uma oportunidades à manipulação das Leis.
Quando um PDM é suspenso, as disposições materiais que continha deixam de estar “formalmente” em vigor, de modo que podem ser violadas de facto sem que isso implique qualquer delito de jure. Um pueril jogo de palavras, para enganar as crianças e os analfabetos que ainda se deixam levar por semelhantes brincadeiras de mau gosto. Se não fosse tão triste, daria vontade de rir. O gosto por leis obscuras e semi-literárias é bem típico das plutocracias do 3º mundo.


CP – Aludiu, recentemente, a planos de ordenamento do território que se limitam a “dar um verniz de legalidade ao caos urbanístico”...

PB- Sim, e repito-o. O caos urbanístico abjecto está à vista, as fortunas “trazidas pelo vento” multiplicam-se, 1/3 dos campos estão abandonados, mais de um milhão de novas habitações estão vazias, multiplicam-se os escândalos ligados ao imobiliário... E tudo se passa na maior das legalidades.
Uma grande utilidade para estas leis é fornecerem verdadeiros instrumentos de chantagem aos agentes político-administrativos que delas necessitarem. Repare: a possibilidade de o proprietário particular enriquecer com o dito alvará está em aberto, basta apenas o gesto certo do agente político-administrativo para que possa facturar a resultante fortuna “trazida pelo vento”. E se o agente não gostar do proprietário, por algum motivo inconfessável? Sobejam-lhe na Lei pretextos para embargar ou adiar a concessão de alvará. E enquanto o alvará não vem, a fortuna não chega...


CP – Também há uma prática comum que consiste em autorizar o aumento das áreas a edificar (majoração de índices)...

PB- São formas de aumentar as mais-valias sobre terrenos já elegíveis o loteamento. Sobre as receitas iniciais, obtêm-se ainda mais. Mais um piso, mais rendimentos “trazidos pelo vento”.
Outra forma de obter mais-valias é solicitar licença para demolir uma moradia unifamiliar e substituí-la por um edifício de apartamentos. Imaginemos que a moradia, só por si, pode valer uns 500.000 €; o lote que ocupa, com alvará para a construção de um prédio de 6 pisos, vale 2 milhões de euros. Nesse caso, compensa a demolição: traz consigo uma mais-valia de 1.5 milhões de euros. Que importa a destruição da estética do bairro, perante um rendimento privado desta natureza?


CP – Por que está o diploma sobre loteamentos sem ser revisto há 40 anos?

PB- Por ignorância antes de tudo, e cupidez logo em seguida.
A ignorância. Em pleno século XIX, as políticas de solos em Portugal só foram estudadas por três ou quatro académicos, cujos escritos não são lidos pelos nem políticos executivos, nem pelos políticos legisladores. De resto, a este respeito como em tantos outros, os políticos que sobraçaram estas pastas têm cultivado uma ignorância mal-disfarçada pela habitual retórica balofa do “desenvolvimento sustentável”. A propósito de urbanismo e política de solos têm sido incapazes de ler qualquer argumento maior do que um “soundbite”. A opinião pública, tão mal informada quanto os políticos que elege, pensa que os problemas do urbanismo são meramente estéticos ou ecológicos – quando na verdade são sociais e económicos, o que é muito mais grave.
A cupidez. Os loteamentos produziram interessantes fenómenos sociológicos. Famílias aristocráticas insolventes há décadas conquistaram fortunas inéditas loteando as quintas periurbanas que haviam herdado dos seus antepassados. Pequenos agricultores tornaram-se novos-ricos ao lotearem as hortas e os pomares dos seus avôs, na periferia das cidades. Estas novas classes dominam a vida pública, económica e política do país. Poucos sabem que a forma como fizeram fortuna configuraria um crime económico em qualquer outro país civilizado, porque não estudaram o assunto; e se estudassem, tão-pouco se preocupariam com isso. O importante é saberem que ganharam a lotaria dos alvarás dentro de toda a legalidade portuguesa.
Entretanto, as cidades portuguesas demorarão séculos a sarar os cancros que estas políticas e estas legislações provocaram em apenas 40 anos. E uma imensa maioria de portugueses de classe média e baixa irá gastar décadas subjugada ao empréstimo à habitação hipertrofiado que sustentou economicamente todo este processo.


CP – Há interesses no sentido da manutenção da situação? As câmaras municipais cobram receitas. E o financiamento partidário dá-se bem com o «statu quo»?

PB- É sabido que perto de 30% das receitas camarárias provêm das receitas sobre o imobiliário. A opinião pública crê que o número excessivo de licenciamentos se deve justamente à necessidade que as câmaras têm de obter receitas. Não partilho dessa opinião.
Em primeiro lugar, cada loteamento novo traz consigo mais despesas autárquicas do que receitas: compete à câmara providenciar o saneamento e as acessibilidades, encargos que não são minimamente cobertos pelas contribuições dos loteadores. É notório que as câmaras mais endividadas são também aquelas onde mais loteamentos se fizeram.
Em segundo lugar, cada alvará de loteamento vale ouro. É como se a Câmara literalmente oferecesse bilhetes premiados do Euromilhões aos proprietários dos terrenos loteados.
Quanto ao financiamento partidário, nada a dizer. Apenas uma enorme recomendação: que em nome da transparência administrativa o Estado e as Autarquias afixem em locais públicos ou em jornais o relatório de contas de cada novo Plano de Ordenamento (seja ele municipal, de pormenor, ou qualquer outro). Nesse relatório haveria uma lista de todos os terrenos afectados, do seu valor ANTES do plano, do seu valor DEPOIS do plano, e os nomes dos respectivos proprietários. No caso de esses terrenos pertencerem a companhias, deveriam ser também divulgados os nomes dos principais proprietários ou accionistas. Saber-se-ia claramente quem ganharia as mais-valias urbanísticas, e exactamente em que montante. Um processo transparente, como devem ser todos os resultantes de actos da administração pública.
Nos países desenvolvidos é esse o procedimento curial. Nenhum plano de ordenamento é promulgado sem que sejam tornados públicos e em grande detalhe os benefícios e os malefícios económicos que provoca.


CP – Como explica que haja tantas casas devolutas?

PB- Muito simplesmente porque não há mecanismos fiscais nem penais de combate à especulação. Nos países desenvolvidos de Europa a política habitacional estabelece que todos os imóveis habitacionais considerados salubres devem ser habitados. Não se promove nenhuma expansão urbana sem que primeiro estejam ocupados todos os imóveis pré-existentes. Para assegurar que isto se passa, os fogos devolutos são multados, de modo a obrigar o proprietário a alugá-los ou a vendê-los a quem pretenda habitá-los. Em certos países desenvolvidos, um imóvel que esteja vazio há mais do que um curto número de anos é expropriado, vendido em hasta pública, e a receita reverte para o proprietário absentista – que entretanto sofre adicionalmente uma multa.
Nada disto se passa cá. Em Portugal, o açambarcamento especulativo de imóveis vive num paraíso fiscal feito à sua medida. Isto gera um ciclo vicioso: os imóveis açambarcados são na prática retirados do mercado, o que cria uma escassez artificial da oferta, o que por seu turno aumenta os preços, o que por seu turno torna ainda mais apetecivel a aquisição e açambarcamento especulativo de imóveis, e assim por diante. Resultado: enquanto os especuladores vão alimentando a construção excessiva de imóveis sobrevalorizados para sempre vazios, as classes médias e baixa rangem os dentes para pagar as prestações dos seus cubículos...


CP – Entende, por conseguinte, que a habitação em Portugal poderia ser bem mais barata?

PB- Sim, esses cálculos têm sido feitos por vários urbanistas e académicos, estudando o que aconteceria aos nossos preços se adoptássemos uma legislação idêntica, por exemplo, à alemã, escandinava ou holandesa. Bastava o Governo rever as suas políticas de solos e de habitação, interditando os loteamentos privados e multando os imóveis devolutos, para fazer reduzir em uns 70% o preço da habitação dos segmentos médio e baixo. Ao mesmo tempo, angariava verbas mais do que suficientes para investir em jardins, estradas, escolas, hospitais, &c. Tudo isto poderá parecer autoritário e utópico, mas não consta que aqueles países onde isto se faz sofram de deficits democráticos, económicos ou orçamentais. A Holanda, berço das economias modernas ocidentais e extraordinária democracia, deveria ser o nosso exemplo a seguir em matérias de politicas de solo e de habitação.

sábado, maio 27, 2006

Actualização sobre a gripe das aves – Maio 2006


















Para melhor visualização pressione duas vezes na imagem

Neste blogue temos procurado fornecer actualizações sobre o vírus H5N1 e sua difusão mundial. O mapa que reproduzimos fornece uma actualização de um mapa publicado aqui no mês de Fevereiro. A diferença entre os dois mapas é patente, verificando-se a existência de aumentos de focos de infecção na Europa e em África.

Sabe-se, hoje, que o vírus original terá passado das aves silvestres para as galinhas. Em 1990, na China, já existia uma variante adaptada a estas aves domésticas. Contrariamente a variantes anteriores o vírus que se adaptou às galinhas infecta não só os pulmões mas qualquer órgão do organismo sendo, desta forma, considerado altamente patogénico.

Outra característica deste “novo” vírus é que se transmite a um conjunto alargado de espécies de aves (mas também mamíferos) sendo letal para muitas delas. No entanto não é letal para algumas espécies de patos, designadamente o pato bravo comum. Quando infectado os indivíduos desta espécie são susceptíveis de um desarranjo intestinal mas pouco mais. As fezes destes patos tornam-se, assim, focos de propagação do vírus.

Ora estes patos migram e estima-se que terá sido através das movimentações migratórias destas aves e do contacto frequente com outras espécies de aves aquáticas, designadamente os cisnes, que fomos confrontados com os primeiros indícios conformados de gripe das aves na Europa.

Não sabemos se o vírus será alguma vez objecto de uma mutação que permita a sua transmissão entre humanos. No entanto começam a haver indícios de que o seu impacte possa ser assombroso entre as populações de aves silvestres.

Por exemplo, o ano passado, morreram 6000 aves aquáticas no lago Qinghai, situado na região centro norte da China. De entre estas aves foram extirpadas cerca de 1/10 da população mundial total de ganso de cabeça listada (bar-headed geese). Com a continuada expansão do vírus é possível que muitas espécies de distribuição restrita e/ou muito concentrada possam torna-se susceptíveis de extinção ou reduções drásticas dos seus efectivos populacionais.

Pouco há a fazer para evitar este cenário a não ser a identificação das áreas e espécies ameaçadas garantindo-se uma adequada monitorização das mesmas e eventual captura de indivíduos para reprodução assistida em cativeiro.

Para este efeito seria importante uma maior coordenação entre as entidades que trabalham na conservação da biodiversidade e os jardins zoológicos. Em Portugal essa coordenação é praticamente inexistente sendo o jardim zoológico um triste repositório de animais em fracas condições de habitabilidade.

A cabra e o vento Leste

Finalmente tenho tempo para este tema.

E logo por coincidência no segundo dia de vento Leste. Não vi as notícias de hoje, não sei se há fogos, mas quase que garanto que amanhã, se continuar o vento Leste como previsto, começarão as notícias sobre fogos.

Mesmo em Maio, mesmo tendo havido um ano com chuva até tarde (o que interessa para efeito do fogo não é se o ano é chuvoso ou não, mas quando chove, mesmo que pouco), tenho poucas dúvidas de que três dias de vento Leste, ainda que não seja forte, são suficientes para que bastantes incêndios apareçam.

Não é muito importante por que razão aparecem, o importante é que nestes dias aparecem facilmente e apagam-se dificilmente.

Quer isto dizer que a culpa dos fogos é do vento Leste? Claro que não, quer simplesmente dizer que o vento Leste é um dos factores da equação.

E onde entra a cabra?

No facto de me parecer que não há maneira mais eficiente de reduzir combustíveis.
Como deixámos de estrumar terras (para o que era preciso ir roçar o mato), como deixámos de nos aquecer e cozinhar a lenha e como reduzimos e muito o gado no monte, os matos acumulam-se.

Ora é esta combinação de acumulação de combustível e de condições climatéricas que tornam muito difícil a gestão do fogo entre nós.

Dir-me-ão que a correcta gestão florestal resolve o problema. Resolve, sim (com custos ambientais muito significativos), mas apenas se a exploração florestal pagar as operações de limpeza, o que não acontece em mais de 50% do território.

Tudo isto são disparates?

Talvez sejam, podem começar a verificar amanhã o grau de fiabilidade das previsões (tendo em atenção o facto de o nosso instituto de meteorologia ser avesso à disponibilização de informação regional).

Daqui para a frente, verifiquem no boletim meteorológico a direcção do vento. Sempre que passar de três dias entre Maio e Outubro, vejam o resultado. E sempre que a previsão, para além da direcção Leste indicar vento forte, verifiquem também.

Lembrem-se de descontar os dias em que choveu minimamente nas duas semanas anteriores.

Hoje o Público no texto do boletim meteorológico não diz a direcção do vento. Mas no desenho do mapa, lá está a direcção do vento.

No fim do Verão conversamos sobre os resultados observados por cada um.

henrique pereira dos santos

sexta-feira, maio 26, 2006

Animais e economia rural

Num comentário ao post anterior um simpático anónimo quiz reduzir as relações da tourada com a conservação da natureza a uma comparação com o tráfico de droga.

Para responder com mais espaço retomei um velho texto que escrevi na lista de discussão da ambio a propósito da pegada ecológica das dietas vegan em comparação com outras dietas.

Aqui fica a minha resposta à questão de saber se a produção de trigo em Portugal é menos impactante que a produção de porco preto ou de borrego ou de cabrito.

O argumento base é a de que há uma perda de 90% da energia utilizável cada vez que se sobe um patamar na cadeia trófica. E este argumento é genericamente verdadeiro, sendo utilizado para explicar que se todos fôssemos vegetarianos poderíamos alimentar muito mais gente e, consequentemente, ter uma pegada ecológica mais pequena.

Qual é o problema desta argumentação?

É que a produção de cereais (e de grande parte das proteínas de origem vegetal) é bastante exigente em solos e disponibilidade hídrica.

Sendo assim como foi resolvido o problema pelas sociedades mediterrânicas tradicionais?

Os melhores solos foram reservados para a agricultura (sobretudo cereais de inverno, trigo, centeio, cevada) quando não há água.

E hortas de produção muito intensiva para os primores (e a língua não deixa mentir sobre o carácter excepcional desta produção) quando há água, cuja tecnologia de gestão foi aproveitada para os cereais de regadio (milho, sobretudo) quando a primeira grande vaga da globalização proporcionada pelos Descobrimentos permitiu a introdução desta exótica (juntamente com o feijão, cultivado em consociação porque permite azotar o solo e produzir proteína vegetal e, mais tarde, em consequência da doença da tinta do castanheiro, também a batata que até essa altura era apenas usada para dar aos porcos).

Esta é aliás a base da alimentação tradicional mediterrânica, seja o pão por estas paragens, seja o pão e as massas, lá para o lado da Itália, essa sim, rica agricolamente e grande produtora de trigos duros.

Na zona de Portugal que conheço melhor, a base da alimentação a partir do século XVI e XVII é o caldo de couves com feijão, mais tarde com acrescento das batatas, tudo acompanhado com quantidades astronómicas de broa de milho.

É a partir desta altura que o País se entorna para o litoral do ponto de vista demográfico porque o milho (e o feijão) permitem alimentar muito mais gente.

Mas neste cantinho da Europa os solos agrícolas são uma raridade e preciosidade (um interregno para mais uma vez clamar por uma maior atenção do movimento ambientalista em relação aos solos agrícolas e à RAN, que é para nós muito mais importante que a REN). O que significa que a grande maioria do território ficaria despovoado e maninho, sem grande utilidade produtiva se a nossa dieta fosse exclusivamente vegetariana.

Porque é o gado miúdo que se encarrega de transformar urzes, carqueijas, tojos e etc., em matéria comestível por nós (com certeza que há sempre aquela velha história do abade que um dia, em consequência de uma aposta, fez um pudim de ovos com palha cortada muito fininha e o deu a comer ao Rei D. Carlos, grande gastrónomo, concluindo no fim que todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha, tudo isto a propósito do divinal pudim do abade de priscos, que é feito com banha de porco).

Cabras sobretudo nas agrestes serras do Norte e Centro (e o facto de ser a chanfana de cabra o prato tradicional dos casamentos das serras xistosas do centro traduz bem a sua pobreza extrema quando comparada com a pobreza remediada mais a Norte, em que se come cabrito), ovelhas e porcos de montanheira nos xistosos e mais suaves relevos femininos do Sul.

Naturalmente há ainda a caça, a pesca (em grande medida por razões religiosas que impunham a abstinência à sexta-feira, na quaresma e noutras vésperas de festividades, como é o caso do bacalhau e do polvo, salgados e secos para se poderem conservar e transportar, no dia de jejum e abstinência que é a véspera de Natal).

E há produção de frutos secos, com a castanha à cabeça de todos, sobretudo no Nordeste, mas em todo o lado onde era possível produzir castanha, até a doença da tinta ter obrigado as pessoas substituí-las por batatas.

Bem como as azeitonas (a oliveira parece vir com os árabes e expandir-se a partir dos passais das igrejas, onde eram cultivadas para se poder substituir o combustível da iluminação porque o azeite era bastante mais conveniente que o sebo de origem animal usado anteriormente), os figos em Torres Novas e no Algarve e, sobretudo, o vinho, que uma bebida que é sagrada há mais de dois mil anos alguma virtude terá (a última ceia, como todos sabemos, é exemplarmente ilustrativa da dieta mediterrânica ao ser consituída por pão e vinho).

Ora para trabalhar a terra o trabalho animal é fundamental (sem ele, não só a vida seria ainda mais dura, como se alimentaria muito menos gente), e portanto a junta de vacas no norte, e de bois nos solos mais fundos do ribatejo, tem o seu papel, tendo como benefício marginal a produção de leite e vitelos, que ajuda à sacralização destes animais através do ritual sacrificial da tourada ou das chegas de bois no Norte, utilizados como mecanismos de melhoramento genético.

Neste sistema o gado não substitui nunca a produção agrícola mas emerge onde não é possível produzir mais nada, porque o solo não dá como nos montes escalavrados ou nos prados salgados da lezíria ou do baixo Vouga lagunar.

Para além destas duas funções, o gado tem uma importância extraordinária num aspecto central da sustentabilidade do sistema: a manutenção do fundo de fertilidade do solo através da produção de estrumes (por amor de Deus não me venham contrapôr com a produção de composto), que é o que permite levar ao máximo a capacidade produtiva dos solos agrícolas.

Ora o que está em causa nestas discussões é que a dieta que resulta de todos estes sistemas, que é claramente omnívora com baixos consumos de carne e peixe, não por opção mas por falta de opção, é que deve ser contraposta às dietas vegan.

As dietas vegan são tão filhas da industrialização da produção agrícola e do mundo rural como o macdonalds. Comparando estas duas dietas, não tenho qualquer dúvida de que a dieta vegan é incomparavelmente melhor do ponto de vista ambiental que o macdonalds ou todas as dietas demasiado ricas em carne e peixe (mas as duas são tristemente monótonas do ponto de vista cultural, não porque não seja possível inventar mil pratos diferentes com os mesmos ingredientes, mas porque lhes falta o enraízamento à terra que só as culturas rurais longamente sedimentadas permitem).

Mas comparando estas duas dietas com a anterior (e como se diz, muito bem, mudar de dieta é, actualmente, mais difícil que mudar de religião) tenho as maiores dúvidas da sustentabilidade das dietas vegan, sobretudo porque assente em preconceitos ambientais errados que levam pessoas muito bem intencionadas e com o enorme mérito de conseguirem definir a sua dieta em função de paradigmas sociais que acham preferíveis, preferir o seitan, produzido com enormes perdas do valor alimentar o trigo, ao fumeiro de Vinhais.

Isto é, se alguém quiser mudar a pegada ecológica a partir da sua dieta, que procure avaliar o efeito de todo o ciclo produtivo do que está a comer (e já agora, não se fique pela economia e a ecologia e olhe bem para as culturas que a sua dieta suporta ou agride).

Por mim acho este esforço vão (pessoalmente dá uma tranquilidade moral grande pensar que o mundo pode estar muito mal, mas é responsabilidade dos outros) e prefiro pugnar por uma energia mais cara que internalize os seus efeitos ambientais no preço, porque acredito mais na eficácia da racionalidade económica que na mudança da natureza humana.

henrique pereira dos santos

quinta-feira, maio 25, 2006

Quercus contra as touradas


A Quercus apoiou uma manifestação contra as touradas, no Campo Pequeno, promovida por organizações defensoras dos direitos dos animais. Muitos ambientalistas, entre os quais alguns membros desta organização, consideram esta posição um anacronismo. Outros consideram-na uma posição louvável. Este é um tema que divide mais do que une os ambientalistas e o blogue da ambio oferece o espaço de comentários a esta mensagem para que cada um deixe a sua opinião sobre a matéria.

---

PS (30 de Maio de 2006)
Seria bom que algumas pessoas entendessem que as associações devem tomar posições que reflictam, sempre que possível, o pensamento dos seus associados. E para que tal aconteça as associações devem concentrar-se no que é essencial e não no acessório.

E o que é essencial? Essencial, no quadro de uma associação, é o que une e motiva as pessoas a constituir-se como associação.

Neste contexto cumpre perguntar se a causa das touradas está relacionada com devir da associação Quercus e se é partilhada pela maioria dos associados?

Bastará conhecer um pouco da história desta associação para entender que não foi esta causa que esteve na origem da sua fundação. Também não foi o vegetarianismo, muito menos a ideologia que alguns teimam em colar a opções de dieta que são, ou deveriam ser, do foro pessoal.

Quem quer defender ideias pessoais em matéria de valores morais tem dois caminhos: fazê-lo sozinho ou fazê-lo no quadro de organizações que perfilham esses pontos de vista.

Tomar de assalto uma associação, com um capital de prestigio conquistado noutras batalhas, como é a Quercus, para agendas pessoais, terá inevitavelmente a oposição dos que se revêm numa linha mais próxima dos princípios fundadores da organização.

Fotografia de João Santiago

quarta-feira, maio 24, 2006

Uma verdade inconveniente

Para informações complementares sobre o percurso de Al Gore, ler aqui.

Estreia hoje, nos Estados Unidos, o documentário «An Inconvenient Truth», um projecto dinamizado por Al Gore - antigo vice-presidente norte-americano e candidato derrotado nas eleições de 2000. No próximo mês será lançado um livro com o mesmo título. Em ambos os casos aborda as consequências das alterações climáticas a nível planetário.



O documentário tem tido críticas nos media muito favoráveis. Por exemplo, ontem e hoje, o New York Times publicou dois artigos sobre ele. E há mesmo uma página de publicidade ao documentário, o que prognostica que o seu impacte nos Estados Unidos pode ser bastante importante. O estilo do documentário - pelo trailler que já vi (pode ser visto aqui, por exemplo) - é bastante cinematográfico (foi realizador por um colaborador do Quentin Tarantino), mas também didático, com Al Gore a servir de «cicerone» (professor) com uma desenvoltura extraordinária.

Cada vez me convenço mais de que o Mundo seria agora bem diferente se Al Gore tivesse vencido as eleições há seis anos. E não era apenas em relação às questões ambientais...

segunda-feira, maio 22, 2006

Um nuclear referendo

A ideia de realizar um referendo sobre a opção nuclear em Portugal, proposta pelo antigo ministro Mira Amaral (o tal do «petróleo verde», que agora arde todos os Verões...) seria peregrina e estúpida se não fosse o caso de lhe estar subjacente uma clara intenção de manipulação. Há questões que não são referendáveis e a questão nuclear é um paradigma. E isto sobretudo porque uma decisão tomada hoje teria repercussões dentro de 10, 20, 30 ou mais anos. Ou seja, os maiores impactes passariam para a geração seguinte; aquela que obviamente não tinha votado no referendo. Seria a mesma coisa que decidir referendar os impostos ou os salários; referendar a dívida pública, de tal modo que daqui a 50 anos quem aqui estivesse que se safasse...

Além disso, uma questão desta natureza torna-se difícil de ser decidida quando a esmagadora maioria da população pouco ou nada sabe sobre energia nuclear. E no meio das vantagens e desvantagens que lhe estão subjacente, claro está que do lado dos que estão a favor se encontram poderosos e ricos lobbies que inundariam o país com hossanas às centrais nucleares.

Por fim, mesmo que se aceitasse um referendo, que tipo de pergunta se faria? Bastaria perguntar: aceita a construção de uma central nuclear em Portugal? Ou convinha indicar a localização? E mesmo que 100% da população da zona onde estaria prevista a central nuclear votasse contra, mas a maioria da população portuguesa votasse a favor, o que se faria? Construía-se à mesma a central nuclear?

Por mim, a avançar-se com esta ideia, a pergunta somente poderia ser esta: Aceita a construção de uma central nuclear em Portugal, qualquer que seja a sua localização geográfica? Somente assim se estaria a jogar limpo. De uma outra forma, é arriscar passar um cheque em branco...

sábado, maio 20, 2006

A política de ciência não se constrói com medidas avulsas

O Estado Português tem investido somas assinaláveis a exportar mão de obra qualificada para o estrangeiro. Através do programa de bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), o Estado patrocinou jovens para que se formassem nalgumas das melhores universidades do mundo. A aposta foi correcta: - enviar jovens para fora, para que se formassem em sistemas académicos excelentes e regressassem trazendo alguma dessa excelência para o sistema académico Português.

Acontece que a grande maioria destes jovens não regressa. Não porque não queiram, mas porque a concessão das bolsas de formação não foi acompanhada das reformas necessárias para que os novos doutorados pudessem competir, no mercado de trabalho, em igualdade de circunstâncias, com os que ficaram.

A solução para este problema requer coragem pois implica reformar o sistema académico Português enfrentando corporações e sindicatos. Todavia, o actual Ministro da Ciência e do Ensino Superior, José Mariano Gago, tem feito pouco para alterar o estado das coisas restringindo-se ao anuncio de medidas avulsas para a ciência. O tempo escasseia e cada ano desperdiçado implica a perda, para o País, de gerações de investigadores.

Os que ficam...

Quem quer singrar no mundo académico Português deve, depois de se licenciar, continuar a marcar passo no departamento onde se formou.

Na primeira oportunidade deve fazer biscates em projectos do departamento mesmo que isso implicar fazer fotocopias, organizar arquivos, traduzir textos, colectar dados com protocolos de amostragem deficientes, etc. Com o tempo é possível que esta estratégia culmine na sua contratação como assistente estagiário. Uma vez contratado como assistente estagiário o desafio é chegar a assistente. Para tal terá de dar o maior numero de aulas que caberiam ao professor que o “meteu “ no departamento. Pouco importa a qualidade das aulas. O que importa, além de cair bem, é tornar-se “útil”.

Uma vez assistente as responsabilidades acumulam-se. Além das aulas e outros biscates há um doutoramento a fazer. Pouco importa quantas publicações saiam do doutoramento ou qual o impacte e relevância das mesmas. Bem feitas as contas o melhor é não despontar muito da média, não vá o "diabo" tecê-las. O que realmente importa é continuar nas boas graças da “nomenclatura” e não ultrapassar os prazos legais para terminar a tese.

Terminada e defendida a tese, a contratação como Professor Auxiliar é uma questão de direitos adquiridos. E quem discordar terá que se ver com os sindicatos. Afinal quem se atreve a questionar o sacro santo dos direitos adquiridos? Quem pode questionar o direito ao trabalho, certo e seguro, de quem passou por tantas agruras, engoliu tantos sapos, sofreu tantas humilhações? Não é a estabilidade o prémio que motivou tantos esforços?

Os que partem....

Para obter bolsa os jovens têm de cumprir um de dois requisitos: ter média de licenciatura superior ou igual a 16 ou ser possuidor de um mestrado. Com a redução do número de bolsas disponíveis torna-se aconselhável possuir algumas publicações científicas, uma proposta de doutoramento exemplar e ser acolhido por universidades e orientadores com mérito reconhecidos. Obter bolsa é, assim, a primeira de muitas provas que o jovem terá de prestar.

Uma vez obtida a bolsa o jovem tem de aprender quase tudo de novo. A realidade é outra e de pouco servem as estratégias de sobrevivência aprendidas na academia Portuguesa. Mas o choque acaba por compensar. Os trabalhos científicos efectuados têm relevância, são aceites nas revistas internacionais e são citadas pelos colegas.

Um doutoramento bem sucedido abre portas mas a consagração de um nome só se faz com continuidade. Ou seja, após 3 a 5 anos de pós doutoramento. A obtenção de financiamento para este período não é difícil. O que é difícil é o passo seguinte, especialmente se o destino pretendido for o regresso a Portugal.

A solução natural para um investigador competente é radicar-se nos EUA. Este é o País que pouco investe na formação dos seus jovens mas que atrai os melhores cérebros que se formaram à custa do erário público de outros países. Quem preferir não emigrar para o outro lado do Atlântico poderá concorrer, num mercado de trabalho competitivo mas justo, em países como o Reino Unido, a Dinamarca, a Suécia, a Finlândia, a França, ou mesmo a Espanha. Mas se aposta for o regresso à pátria lusa o que se oferece é uma viagem "sem luz ao fundo do túnel" pois regressam a um País que investiu na sua formação mas não criou as condições para a sua empregabilidade.

Soluções?

Portugal abortou a expectativa de poder vir a ter uma rede de investigação pública (o chamado INIC – Instituto Nacional de Investigação Científica) semelhante ao CNRS Francês ou CSIC Espanhol. Os poucos Laboratórios do Estado que existem em Portugal não se dedicam à investigação científica fundamental mas à prestação de serviços ao Estado. Alguns deles nem isso, pelo que a sua função resume-se a existir com um metabolismo baixo por forma a não destacar no quadro das despesas públicas. Como é natural os Laboratórios do Estado não oferecem oportunidades para os jovens doutorados Portugueses. As reformas necessárias para transformar estas estruturas, na sua grande maioria, decadentes, foram identificadas há anos mas o entusiasmo reformista do Governo parece centrar-se, fundamentalmente, na alienação do património imobiliário de alguns destes laboratórios.

As empresas privadas foram e continuam a ser apanágio para a criação de emprego científico. Num cenário de desenvolvimento tecnológico as empresas podem contratar doutorados. Mas também é verdade que o número de especialidades úteis para a maioria das empresas é limitado. Logo, mesmo num cenário de crescimento económico, que não é o actual, será sempre necessário manter um mercado público de ciência activo e orientado por critérios de mérito.

A decisão de extinguir o INIC teve como enquadramento filosófico a ideia de que o cerne da investigação pública deve realizar-se nas Universidades. É assim nos EUA (exceptuando os grandes laboratórios que produzem investigação estratégica para a política do Estado, como a NASA), no Reino Unido, Dinamarca, etc. Acontece que para centrar a investigação pública nas Universidades é necessário que estas se organizem com base em critérios rigorosos de promoção do mérito sob pena de se desperdiçarem recursos escassos em sistemas de tráfico de influencias e regimes de endogamia [outro texto].

A promoção do mérito implica: a) a livre concorrência no acesso ao trabalho; b) a progressão das carreiras em função de créditos científicos; c) existência de salários ponderados pela produtividade científica; d) a flexibilização das cargas horárias consoante a produtividade científica; e) a capacidade de “compra” do salário, com verbas de projectos, para dedicação exclusiva a actividades cientificas, etc.

Infelizmente a extinção do INIC não foi acompanhada de uma consequente reforma do sistema de ensino superior em Portugal. Na prática esta extinção representou o final de um projecto de investigação científica, de cariz público, sem que o modelo alternativo tivesse sido implementado.

Este é um problema central da nossa política científica: as medidas são avulsas, incompletas, na sua maioria inconsequentes. Primeiro foi a extinção do INIC sem que o modelo alternativo tivesse avançado. Depois as bolsas de doutoramento sem prever o regresso dos doutorados. Agora os contratos de 5 anos sem se oferecer uma luz ao fundo do túnel; ou seja, um “funil” que garanta que os melhores cientistas Portugueses tenham a possibilidade de ingressar numa carreira científica regulamentada (como acontece em Espanha com o programa “Ramon y Cajal” que também oferece 5 anos de contrato).

A proposta de celebração de contratos de 5 anos resolve um problema de curto prazo, ou seja, dá emprego aos investigadores que acabaram o primeiro pós doutoramento. No entanto é uma solução que se não for integrada numa política de emprego científico é indigna pois consigna uma situação injusta:

* Para quem tenha condições de competir no mercado de trabalho internacional oferece-se um contrato de 5 anos;

* Para quem não tenha condições de competir neste mercado oferece-se um contrato para toda a vida numa carreira docente regulamentada.

A resposta a esta indignidade é a continuada exportação dos melhores cientistas nacionais para Países que já entenderam que a meritocracia é o “pior sistema à excepção de todos os outros”.

Miguel B. Araújo
Professor Associado Convidado, Universidade de Copenhaga
Investigador "Ramon y Cajal", Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid
Investigador “senior” Associado, Universidade de Oxford

sexta-feira, maio 19, 2006

Falsas aparências, hipocrisias infinitas

Leio no Público que o secretário de Estado do Ordenamento do Território, João Ferrão, disse num debate de apresentação do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) que uma das suas tarefas nos últimos tempos «para concluir o processo foi convencer os membros do Governo, com interesses muito díspares do interesse do PNPOT, a participarem na definição do contributo de cada ministério para o ordenamento do território». Ou seja, o próprio governante admite que o seu Governo estava ainda na idade da pedra em relação a estas matérias; insensível, para não dizer néscio. E isto apesar de o actual primeiro-ministro ter sido ministro do Ambiente, o ministro da Presidência ter sido secretário de Estado do Ordenamento e do ministro das Obras Públicas ter sido um (re)conhecido consultor na área do ambiente.

Mesmo não me considerando velho, já há muito que deixei de acreditar em Programas Nacionais ou Planos Nacionais ou Estratégias Nacionais. São meras listas, nem sempre com boas intenções, que nada resolvem. E que apontam medidas completamente contrárias à prática. Basta ver a aplicação no terreno de tudo o que se foi aprovando ao longo dos últimos anos. Confira-se os resultados do Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa, aprovado com pompa e circunstâncias pelo Ministério então liderado por José Sócrates e Pedro Silva Pereira. Ou o que vai acontecendo no Algarve e no litoral alentejano. Em questões de ordenamento do território, os lusitanos planos são uma fraude.

Em suma, parafraseando o meu «amigo» Padre Gabriel Malagrida - um dos personagem do meu último romance -, diria que os planos portugueses em matéria ambiental são apenas «falsas aparências, hipocrisias infinitas, e nada mais; monturos cobertos de neve para enganar com aquela fraudulenta superfície (e) que os faz parecer totalmente diversos do que na realidade são».

quarta-feira, maio 17, 2006

Quem paga a factura do combate aos fogos florestais?

Segundo informe de 12 de Maio da agência Lusa, o economista e ex-ministro socialista Daniel Bessa defendeu nesse mesmo dia, numa conferência do Centro Pinus decorrida no Porto, a isenção de impostos na transmissão de propriedades e sobre os rendimentos florestais como forma de promover o reordenamento da floresta portuguesa.

Em notícia do jornal PÚBLICO de dia 15 de Maio, constava que segundo a Estratégia Nacional para as Florestas, Portugal gasta oficialmente 27 euros por hectare, a cada ano, para proteger as florestas dos incêndios. A este valor devem ser acrescidas as perdas dos bens e serviços florestais pagos com subsídios nacionais e comunitários, que resultam numa soma muito maior.

Como se sabe, mais de 97% da floresta nacional é privada, de modo que os rendimentos da exploração de madeira, cortiça, cogumelos, espargos, silvopastorícia e caça pertencem aos particulares. Na grande maioria dos casos as despesas de reflorestação, limpeza, desmatação, ordenamento, abertura de acessos, prevenção e combate a incêndios são ou subsidiadas, ou suportadas directamente pelo Estado. Só as despesas de protecção contra incêndios florestais alçar-se-ão a 170 milhões de euros (34 milhões de contos) por ano entre 2006 e 2010.

Panorama extraordinário, portanto.

Os nossos proprietários de terrenos rústicos, sejam agrícolas ou sejam florestais, estão tecnicamente isentos de qualquer taxação sobre o solo que possuem - caso único entre os países ocidentais. O solo é um recurso natural escasso e um factor de produção de riqueza. Sempre que o Estado reconhece uma propriedade privada e a protege com o seu aparelho jurídico e policial, está a conceder ao seu proprietário o privilégio de ser o único a explorar aquele recurso natural, e a sonegar esse direito a todos os demais. Por isso as doutrinas de Economia dos Recursos Naturais defendem que se imponha uma taxa sobre o uso do solo, completamente independente dos impostos sobre o rendimento do proprietário. Essa taxa, cujos montantes são investidos em obras e serviços públicos, destina-se repor a justiça social que é incontornavelmente ferida pelo acesso desigual ao recurso natural solo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa pode equivaler a 4% do valor venal do solo; ou seja, a cada ano o proprietário paga ao Estado 4% do preço de mercado do seu hectare. Os proprietários que não queiram ou não saibam gerir bem os seus empreendimentos agro-florestais colocam-nos imediatamente à venda, o que assegura um mercado de solos fluido e a preços não-especulativos. Além disso, os proprietários têm responsabilidade civil pelos danos ambientais que possam causar.

Ora, entre nós passa-se todo o fenómeno contrário. Ao contrário dos outros países ocidentais, não se aplica nenhuma taxa. Todo o contrário: os titulares dos terrenos habilitam-se a receber subsídios pelo mero facto de serem proprietários. Colhem o benefício do subsídio, mas não o encargo da taxa que reporia a justiça redistributiva.

Outro problema não menos ponderoso nasce do carácter antiquado do nosso Código Civil, onde está plasmado o conteúdo dos direitos de propriedade. E constata-se isto: o proprietário goza à partida de todos os direitos (“plena re potestas” – plenos poderes sobre a coisa possuída) e nenhuns deveres. Não é obrigado a manter a camada arável do solo. Não é obrigado a dar-lhe o mais módico dos cuidados agrícolas ou silvícolas. Por consequência, tem o direito de até decapitar os seus solos se assim o desejar – e nalguns casos com a ajuda dos subsídios à cerealicultura, como se tem visto nas serras algarvias.

Perante este panorama, sugiro uma medida diametralmente oposta à avançada por Daniel Bessa. Como foi dito, este ano o Estado prepara-se para gastar 27 € por hectare de floresta na protecção contra incêndios (que eclodem maioritariamente em propriedade privada). Como financiar estes gastos? Ora, cobrem-se aos titulares dos terrenos florestais 27 € de taxa por hectare por ano para cobrir essa despesa. Quem usufrui dos rendimentos sobre um recurso natural escasso, como é o solo agro-florestal, deve também suportar as despesas da sua manutenção. O solo não pode continuar a ser pretexto para a mera distribuição de receitas e de privilégios aos seus titulares - isso justificava-se na época feudal, não num Estado de Direito democrático com uma economia desejavelmente meritocrática.

Em Portugal, quem possui um automóvel ligeiro é obrigado a pagar por ano uns 30 € de imposto de selo, é obrigado a inspeccionar as condições de manutenção do veículo, e obrigado a pagar um seguro de responsabilidade civil sobre danos causados a terceiros. Quem possui um terreno florestal não paga taxa, não é obrigado a fazer a manutentenção das suas matas, não é responsabilizado pelos encargos trazidos a terceiros pelos incêndios nos seus terrenos, mas tem direito a subsídios e a gozar dos lucros da floresta.

Reza uma máxima clássica do Direito: "Ubi commoda, ibi incommoda". Quem goza as vantagens deve arcar também com as desvantagens. Seja.

segunda-feira, maio 15, 2006

Lá vai Lisboa...

«Uma avenida mais homogénea, com uma imagem urbana requalificada e que atraia mais pessoas para o centro da cidade, é o objectivo do Plano de Alinhamento e Cérceas para a Avenida da República, que a vereadora do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa (Gabriela Seara) vai apresentar na próxima reunião pública da autarquia» - assim começa o artigo do Diário de Notícias.

Quando ouço intenções autárquicas deste género - ou seja, alinhamento de cérceas -, até tremo! Obviamente, o alinhamento é sempre para cima; nunca para baixo. E mostra sempre que o «crime» acaba sempre por, mais cedo ou mais tarde, compensar. Primeiro, autoriza-se um prédio a ter mais um ou dois andares, depois mais outro distante, em seguida outro, até que no meio do caos, todos acabam por beneficiar de aumentos em nome da «harmonia».

Pelo que vejo pelos projectos que têm vindo a ser apresentados pela equipa de Carmona Rodrigues, Lisboa ameaça tornar-se um «couto do betão», ainda maior do que o foi desde Abecassis. Apenas com a «nuance» de ser feito com base em planos que atropelam o bom senso e um desenvolvimento harmonioso da cidade. A autarquia de Lisboa manifesta apenas um objectivo: autorizar a construção e permitir a especulação para daí retirar dividendos financeiros. Nada mais do que isto. Não se vê um único projecto estruturante no sentido de inverter a sangria populacional das últimas duas décadas. Lisboa continua na senda da desertificação humana e na massificação do betão. Há alturas em que mais vale estar parado do que mexer: mexem, logo estragam.

A grande farsa

Um relatório hoje divulgado pela Comissão Europeia revela que as quotas de emisões de dióxido de carbono concedidas pelos diferentes Estados, incluindo Portugal, não foram esgotadas durante o ano passado. Apenas os ingénuos julgarão que esta é uma boa notícia; na verdade, é uma péssima notícia, pois demonstra, como se sabia desde o início, que este tipo de mercado de emissões era um «salvo-conduto» para as indústrias continuarem a poluir, sem qualquer esforço de redução.

Claro está que este esquema, ao beneficiar as indústrias, prejudica os cidadãos, porque estamos perante a situação do «cobertor» que se se puxa para um lado descobre o outro. Ou seja, ao se ter cedido uma maior margem às indústrias, isso não significou qualquer alteração nas quotas totais de cada país. Significa isto que os Governos dos Estados-membros - leia-se os contribuintes - têm de assumir todo o esforço (logo, os encargos...) do Protocolo de Quioto. Isto não é mais do que, na prática, uma concessão de subsídios encapotados que os Estados dão às empresas. Era tão-só isto que, por exemplo, o empresário Patrick Monteiro de Barros pretendia com a «sua» refinaria, que afinal também trazia acoplada uma central térmica. Ele e os seus sócios queriam apenas que fossem os contribuintes a pagar aquilo que eles poluiam... Eles ficavam apenas com os lucros.

sexta-feira, maio 12, 2006

Refinaria de Sines

O colapso do projecto tal e qual estava apresentado é uma boa notícia para todos nós. Na prática o promotor pretendia a externalização dos custos ambientais do empreendimento. Uma externalização com valores de mercado perfeitamente identificados em virtude do nosso vinculo ao Protocolo de Quioto. Um custo que seria pago pelo erário público; ou seja, pelos nossos impostos. Era, pois, licito perguntar se o investimento que se pretendia imputar ao Estado não poderia ser gasto de outra forma.

Há umas décadas este tipo de raciocínios não se fazia mas graças ao facto das emissões de carbono terem hoje um valor de mercado é possível evitar erros desta natureza. Na realidade o projecto só era rentável se os custos ambientais fossem pagos pelo povo. Seria ainda menos rentável se as futuras gerações fossem consideradas.

Os investimentos prioritários de Portugal, em matéria de energia, deveriam centrar-se nas energias do futuro, i.e., nas renováveis. Os Países que inovarem mais rapidamente nesta matéria serão os Países que terão cartas a dar na nova economia da energia.

Segundo as palavras do promotor, a causa próxima da desistência do projecto terão sido as declarações do Secretário de Estado do Ambiente, Humberto Rosa, sobre as emissões de CO2 do projecto. É um argumento tonto pois mais tarde ou mais cedo os valores seriam divulgados na comunicação social e discutidos abertamente. Mas sendo assim só me posso congratular com as palavras de Humberto Rosa, ex-membro deste blogue. Com este resultado, cuja responsabilidade se lhe pretende imputar, já deixou uma marca positiva no Governo.

terça-feira, maio 09, 2006

Nuclear - adenda

A propósito do interessante post do Pedro Barata sobre o nuclear e a percepção do risco, gostaria de acrescentar que existem dois outros factores muito importante que contribuem para que a energia nuclear jamais possa ser comparável com uma qualquer outra «fonte» de risco.

Para além dos aspectos apontados pelo Pedro Barata, a radiação representa um perigo invisível. É esta sua invisibilidade - e ausência de outras características que possam ser perceptíveis pelos nossos sentidos - que a tornam «especial». Em abono da verdade, muitas outras substâncias têm este tipo de características.

No entanto, o risco associado ao nuclear é porventura o único que, a uma escala humana, jamais pode ser remediado na sua totalidade. É este carácter de quase irreversibilidade que coloca o nuclear num patamar de perigosidade que não é comparável com outros «objectos de risco». O nuclear não é 100% seguro e em caso de acidente, os efeitos do nuclear serão sempre muito piores e irreversíveis à escala humana.

Aliás, isto remete para a questão do risco (probabilidade) e das consequências de um acidente. Todos sabem que a probabilidade de um acidente de avião é muitíssimo menor comparativamente à de um acidente de carro. Mas se porventura estivermos dentro de um avião que perdeu os motores a 10 mil metros de altitude, a anterior probabilidade deixa de «funcionar»; e passa a funcionar outra probabilidade: a de sair vivo quando se é vítima de um acidente. E neste caso, parece evidente que o risco de morrer é superior no caso do avião que fica sem motores a 10 mil metros...

P.S. Gostava de saudar o Viriato Soromenho-Marques pela sua entrada na Ambio, que vai assim ficar (ainda) mais interessante...

sexta-feira, maio 05, 2006

O subsídio e o pagamento de serviços

No post abaixo Rosário Oliveira traz contributos interessantes ao debate sobre o que fazer como o nosso mundo rural.

Apesar da sua profissão de fé no facto dos pagamentos à produção e o pagamento de serviços estarem em instrumentos separados da PAC, o que evitaria confusões, vale a pena olhar para a realidade mais de perto.

Tomemos o exemplo da agora famosa medida agro-ambiental da redução da lixiviação de agro-químicos para os aquíferos.

A sua origem é exactamente a do tal instrumento do pagamento de serviços ambientais e não a do apoio à produção.

No essencial a medida prevê o pagamento de ajudas pela racionalização (que pressupõe a redução) na utilização de agro-químicos em determinados sistemas de produção agrícola.

Qual é o serviço ambiental produzido pelo agricultor? Nenhum, o agricultor recebe uma compensação por perda de rendimento decorrente da utilização de boas práticas agrícolas.

Ora é este tipo de confusão que tem sido uma tragédia em Portugal, a confusão entre apoio à produção, mesmo que mais ambiental, que é ainda assim apoio à produção e compensação da perda de rendimento, e o verdadeiro serviço ambiental prestado e não apropriável no mercado, por exemplo, quando se apoia a utilização de estrumes ou compostos produzidos a partir dos matos, em que estaremos a pagar o serviço de redução de combustível, redução essa que é uma mais valia produzida pela actividade agrícola mas que não lhe é essencial,(a confusão não decorre dos regulamentos da PAC mas das opções de Portugal na sua aplicação).

Poder-se-iam multiplicar os exemplos, mas parece-me que não vale a pena.

Uma referência ao dinheiro devolvido por falta de capacidade interna para a sua aplicação: muitas das medidas desenhadas pelos regulamentos portugueses de aplicação da PAC contêm entraves à sua aplicação brutais. Alguns deles pura e simplesmente parecem dirigir-se a um país de ficção que não existe. Portanto, uma parte da responsabilidade da devolução poderá ser falta de iniciativa, mas seguramente a maior parte decorre da vontade do país querer fazer uma agricultura cujo modelo é perfeitamente claro na cabeça dos seus mentores, mas tem o pequeno defeito de não ter nenhuma aderência à realidade. Vale a pena, a este respeito, consultar os estudos de Francisco Avillez sobre o rendimento e competitividade agrícolas em Portugal.

Uma última referência à ligação economia e conservação da natureza. Com base nas orientações de gestão do Plano Sectorial da Rede Natura foi desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia, cordenado por Lima Santos, um estudo encomendado pelo ICN onde exactamente se identificam essas relações e, inclusivamente, se fazem as propostas de medidas, quantificadas, que permitam orientar as explorações agrícolas no sentido da produção de biodiversidade. A adopção de medidas de política nesse sentido (a forma possível dos impostos das comunidades urbanas e industriais pagarem os serviços prestados pelas comunidades rurais, quando o mercado não os valoriza).

Penso que o estudo estará disponível daqui a pouco tempo e constitui um interessante documento para esta discussão.

henrique pereira dos santos

Tragédia puxa Tragédia...

Por Rosário Oliveira

A tragédia do mundo rural em Portugal apela a uma trágica discussão de ideias que seja capaz de acudir aos aspectos prioritários, pelo que se torna fundamental contextualizá-la no quadro da política agrícola.

Como é sabido, a Política Agrícola Comum (PAC) tem-se assumido como o grande motor de transformação do espaço rural nas últimas duas décadas. Para o bem e para o mal a ela se deve a sobrevivência de muitos dos nossos agrossistemas e, por conta dela também, alienaram-se territórios a usos pouco visionários em relação à base socio-económica indispensável a quem escolhesse fazer da ruralidade o seu quadro de vida.

Não abrindo aqui lugar para a avaliação de uns nem de outros aspectos, o que importa é estarmos cientes de que estes últimos 20 anos nos deixaram uma herança exigente em termos de reflexão e de prognóstico para o futuro do mundo rural. E isso não resulta da “confusão entre subsídio à produção e o pagamento de serviços”, como é referido no artigo “Ideias trágicas para o mundo rural”, tanto mais que estes correspondem a dois blocos de instrumentos claramente separados desde a Reforma de 1992.

Nem tão pouco estamos já em condições de transferir a culpa da ineficiência das políticas às assimetrias europeias que dividem os países ricos do norte dos países pobres do sul. Esta associação de ideias, por fundamento que encontre nas lógicas de mercado e de distribuição de riqueza, escamoteia o reconhecimento da incapacidade e da falta de empreendedorismo lusitanos, indispensáveis para fazer face a tais contrastes. Quantos milhões de Euros já foram devolvidos à Europa por falta de capacidade e de iniciativa para os gastar? O constrangimento ao sucesso nem sempre parece estar na falta de recursos financeiros, mas na ausência de visão e de planeamento estratégico que permita definir o caminho que queremos prosseguir e os objectivos que pretendemos alcançar, neste caso em matéria de política agrícola.

Se considerarmos que das orientações emanadas pela última Reforma da PAC, em vigor desde Janeiro de 2005, se destaca, entre outras, o desligamento à produção, o que quer dizer que cada agricultor recebe um pagamento único por exploração, independentemente do que produza, não é difícil adivinhar o avolumar do problema de continuarmos sem estratégias nem visões a longo prazo para o mundo rural. E, na mesma lógica, podemos compreender que não é o abundante número de referências às questões da multifuncionalidade da agricultura, ao pagamento de serviços ambientais ou à sua relação com o desenvolvimento rural, que constam nos documentos estratégicos europeus para o período 2007-2013, que garante a eficiência da aplicação do novo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER).

O grave da questão vem ao de cima quando nos damos conta que estamos na véspera de iniciar mais um ciclo de apoios e nos deparamos com um espaço rural carente de orientações porque, em grande medida, por parte dos decisores, dos técnicos e dos investigadores ainda não estamos em condições de saber o que significa efectivamente a multifuncionalidade da agricultura, o pagamento de serviços ambientais ou como activar processos consequentes de desenvolvimento rural. Será que se justifica ainda alimentarmos a ilusão de que são as comunidades urbanas e industriais que devem pagar às comunidades rurais os serviços ambientais que estas prestam, numa Europa em que os conceitos e os limites do rural e do urbano são cada vez mais ténues? Será que os centros urbanos em Portugal oferecem à média dos portugueses uma qualidade de vida assim tão elevada para que estes se disponham a pagar a factura dos serviços ambientais a cargo do mundo rural? Ou será da responsabilidade dos nossos políticos assegurarem uma melhor distribuição das finanças públicas de modo a que a sobrecarga urbana do litoral não nos afunde um dia destes nas profundezas atlânticas?

Por outro lado, existe uma outra questão de base inerente a toda esta problemática. É que ao falarmos de serviços ambientais não podemos iniciar o preenchimento da factura sem antes sabermos o preço do que queremos cobrar nem as características do serviço que queremos adjudicar. Ainda sabemos muito pouco acerca de como executar os serviços, dos meios necessários para a sua execução e dos custos inerentes. A ponte entre o ambiente e a economia ainda é muito frágil. Se queremos reclamar um maior equilíbrio entre o pilar da produção e o do desenvolvimento rural, parece ser da mais óbvia necessidade definirmos orientações e prioridades que reestruturem o mundo rural e territorializem os instrumentos políticos e financeiros em função das especificidades regionais e locais.

Dessas especificidades não podem apenas ser considerados os recursos naturais sem que sejam considerados, em igualdade de circunstâncias, os recursos humanos e sociais. Não existem nas nossas condições geográficas soluções de gestão florestal sustentáveis que dispensem a presença humana; não existem culturas inovadoras cujo maneio não implique a presença humana; grande parte da conservação da biodiversidade exige a presença humana; o património cultural e paisagístico é assegurado pela presença humana. Contudo, a presença não basta. É necessário ser activa, criativa, inovadora e empreendedora. E é a criação deste capital agro-social que não podem ser descurado. Sem ele não haverá nem multifuncionalidade, nem serviços rurais, nem desenvolvimento rural.

Se a discussão for profícua neste sentido talvez possamos estimular alguma celeridade na elaboração do Plano Estratégico Nacional que ao Estado Português cumpre definir para que sejam estabelecidas as prioridades de acção do FEADER tendo em conta as orientações estratégicas comunitárias.

Arquitecta Paisagista

quinta-feira, maio 04, 2006

Nuclear e a percepção do risco

Existe um argumento pró-nuclear, muito utilizado recentemente, e que parece à primeira vista, um argumento absolutamente racional: o facto de, até ao momento, não existirem vítimas mortais de acidentes nucleares ou de exposição a produtos radioactivos decorrentes da exploração de centrais nucleares, e o contraste com um conjunto de situações quotidianas que provocam muito mais vítimas do que o nuclear terá alguma vez produzido. Alguns exemplos:

* problemas respiratórios causados pela exploração dos combustíveis fósseis. Basta pensar na “black lung disease” associada à mineração do carvão, ou à mais alta incidência de cancros de pulmão associada à poluição atmosférica nas cidades;

* mortes provocadas por medicamentos mal testados ou insuficentemente testados, como foi o caso da Talidomida, nos anos 60;

* as mortes provocadas pelo tabaco.

É indiscutível que todos estas causas de morte são muito mais mortíferas do que a indústria nuclear civil, até ao momento. Então, porquê não aceitar o risco nuclear, se podemos viver bem com todos estes outros riscos

Seguindo um cálculo supostamente “objectivo”, baseado por exemplo na probabilidade estatística de casos mortais, é óbvio que a resposta só pode ser, em quase todos os casos, pró-nuclear. Basta pensar nas mortes causadas pelo cancro de pulmão na população de fumadores (activos e passivos) compará-la com Chernobyl, para termos um cálculo irrefutavelmente pró-nuclear.

A questão é outra, contudo, e não pode ser colocada em aritmética simples. Em primeiro lugar, as mortes são, na maior parte dos casos, referidas a situações com graus de certeza substancialmente maiores do que aqueles que dizem respeito à indústria nuclear. Mesmo as mortes por poluição atmosférica são, por assim dizer, mais "certas" do que as da indústria nuclear.

Em segundo lugar, na maior parte das situações, o indivíduo pode subtrair-se à causa da morte, apenas a grande custo pessoal. Por experiência própria, deixar de fumar não é fácil, e não "comer" com a poluição atmosférica implica, na maioria dos casos, mudar de cidade. No segundo caso, existem mesmo assim, estratégias de controlo do risco - não andar em ruas poluídas, usar os transportes públicos. Ambas as situações, apesar de tudo reflectem uma medida de controlo sobre o risco. No caso da indústria nuclear, a sensação de cada indivíduo é de que o risco, mesmo que seja mínimo, não é controlável. E para qualquer indivíduo, por irracional que pareça, um risco controlável é mais tolerável do que um risco, mesmo que com uma probabilidade baixa, incontrolável. Dezenas de estudos de psicologia social do risco indicam isso mesmo. Obviamente, muitos técnicos defendem que as decisões devem ser tomadas com base em medidas objectivas de risco, em vez das percepções de risco, ditas "subjectivas". Por isso vemos normalmente mais físicos nucleares a reclamarem contra o alarmismo social em volta do nuclear, para imediatamente a seguir alarmarem-se eles com um outro perigo social. Essa "dissonância cognitiva" está amplamente documentada (por exemplo, estudos mostram repetidamente que a obrigação de usar cinto de segurança nos automóveis alterou substancialmente a percepção de risco e modificou o comportamento dos automobilistas) No caso do nuclear, ela é, aliás, a razão pela qual a população junto de instalações nucleares muitas vezes defende a manutenção da instalação, ou mesmo a sua expansão – seria possivelmente doloroso admitir o risco. Simultaneamente, estudos de psicologia têm também revelado que a mesma dissonância cognitiva faz com que sistematicamente, os técnicos das indústrias com riscos ambientais subestimem esses mesmos riscos. Os riscos da indústria nuclear têm sido sistematicamente subavaliados (e os custos também).

Em terceiro lugar, o nuclear coloca questões de limite à nossa noção de responsabilidade colectiva. Obviamente existem muitas mortes derivadas da poluição automóvel, mas de alguma forma toleramos melhor essas mortes, porque sabemos:

* que há poucas alternativas ao transporte individual;

* que a nossa contribuição individual para o mal colectivo, de cada uma das milhentas decisões que tomamos, é razoavelmente insignificante.

Por contraste, apenas tomamos uma opção normalmente em relação à industria nuclear, mas essa decisão única acarreta consequências, potencialmente, ainda que insignificantemente em termos probabilísticos, catastróficas. E a maioria de nós, racionalmente, decide-se pelo não.

Acresce a isto tudo, um conjunto de razões mais "prosaicas" e "tecnocráticas" para não considerar o nuclear como uma opção no mix energético, e que já expus noutro lugar. A indústria nuclear é cara, é altamente subsidiada, é desnecessária para cumprir com o Protocolo de Quioto, emite dióxido de carbono, não reduz a dependência do petróleo, é uma tecnologia particularmente inadaptada ao mercado liberalizado

Apenas uma "working question": se os estados europeus se desvinculassem das Convenções que limitam a responsabilidade civil dos operadores nucleares, existiria alguém interessado em operar uma central, em condições puras de mercado? Conseguiria esse operador financiamento e seguro para um eventual acidente nuclear? Porque será que a indústria nuclear vive há 50 anos debaixo de uma limitação de responsabilidade civil dada às indústrias nascentes?

Todas estas razões "prosaicas", "tecnocratas" e "economicistas" já deveriam ser suficientes, sem entrarmos em exposições éticas e considerações sobre o risco nuclear.