sexta-feira, maio 24, 2013

Lição de leitura



Rodrigo Serra resolveu comentar o meu post anterior nos seguintes termos:


“Obrigado pela divulgação do meu texto, pode ser que assim as pessoas percebam mais facilmente a falácia dos seus argumentos contra a conservação do lince e em geral”

Resumindo, depois de me destratar, Rodrigo Serra acha que a resposta normal à minha reacção (“quem não se sente não é filho de boa gente”) não é reconhecer que foi excessivo e fez um ataque pessoal injustificado, pelo qual pede desculpa, mas sim reafirmar que se tratava simplesmente de uma discussão sobre falácias que o Rodrigo desmascarou galhardamente.

Vamos então saltar por cima dos insultos e concentremos a atenção sobre os textos em causa.

Rodrigo Serra diz que eu digo que: “se baixar a UICN o estatuto do lince de criticamente em perigo de extinção para o estatuto de em perigo de extinção isso quer dizer que vamos nós os conservacionistas morrer à fome, por isso temos medo de perder os nossos postos de trabalho.”

Vejamos o que efectivamente eu digo: “esse passo de reconhecimento de que a espécie está hoje num perigo menor (eu diria, muito menor) de extinção do que há dez anos só ainda não foi dado porque os conservacionistas realmente não gostam de boas notícias. Acham-nas perigosas porque podem conduzir à redução dos recursos disponíveis para a conservação. Com alguma razão.”

Se Rodrigo Serra confunde os recursos disponíveis para a conservação com o seu emprego eu não tenho nada com isso. Eu não faço essa confusão. O que digo, e resulta evidente de toda a política de conservação, é que é natural que a afectação de recursos seja feita em função do grau de ameaça dos valores existentes. E que é normal, e até ponto certa, a preocupação dos conservacionistas com a eventual redução da classificação do grau de ameaça dos valores ameaçados e os seus efeitos na afectação de recursos para a conservação desses valores.

Rodrigo Serra diz: “Quando baixarmos o estatuto do Lince-ibérico para "em perigo de extinção", isso vai dever-se ao trabalho de conservacionistas, e vai ser um prémio extremamente saboroso para quem trabalha com esta espécie - só mesmo quem não trabalha no terreno pode pensar que a ideia de um conservacionista é extinguir a espécie a que se dedica. É perfeitamente idiota, ou mal intencionado, sugerir-se tal coisa. Não somos todos iguais, os que trabalhamos e os que postam postas de pescada.”

Este parágrafo é um parágrafo bastante estranho. Primeiro faz uma afirmação sem qualquer evidência empírica (a de que a diminuição do grau de ameaça do lince se deve ao trabalho dos conservacionistas) para apresentar de seguida uma ideia sem qualquer relação com essa afirmação e que nunca vi ninguém defender: “a ideia de um conservacionista é extinguir a espécie a que se dedica”.

O que é absolutamente seguro é que em nenhum momento do texto que escrevi existe a menor sombra de questão relacionada com este parágrafo, excepto a minha ideia (que classifico como a “minha pouco consensual opinião sobre o assunto”) de que a recuperação das populações de lince resulta essencialmente da recuperação das populações de coelho, que, por sua vez, resulta da adaptação às epizootias que são frequentes nesta espécie.

Deve ser por esse ténue vínculo que Rodrigo Serra mais à frente no seu texto diz: “Podemos pensar que a espécie recupera apenas pela recuperação do coelho - à qual faltam dados e tempo para verificar a consistência, uma vez que toda a gente informada sabe que isto do coelho vai por ciclos, ora aumenta, ora diminui”.

A falta de lógica formal deste texto é extraordinária e demonstra como faz falta uma sólida disciplina de filosofia na formação escolar de qualquer pessoa.

Note-se que Rodrigo Serra, que antes afirmou a pé juntos que a recuperação do lince se devia ao trabalho dos conservacionistas, vem agora dizer que para perceber porque recupera a população de lince “faltam dados e tempo para verificar a consistência”, no que finalmente me parece haver acordo comigo.

Mas o facto de faltarem dados e tempo não nos impede de notar os factos que existem, nomeadamente o facto da recuperação do lince se iniciar antes dos grandes investimentos na sua conservação, no facto de muitos outras espécies de predadores de coelhos estarem também a recuperar e ainda no facto de todo o dinheiro investido na recuperação de lince, mesmo considerando que foi todo gasto em gestão de habitat (o que é uma hipótese grosseiramente errada, como demonstra a preocupação legítima do Rodrigo com o seu emprego), a dividir pela área de intervenção, dar um valor por hectare que não seria suficiente para fazer uma gradagem de discos, quanto mais alterar profundamente habitats.

Até aqui estamos na discussão dos dados (os poucos que aparecem nesta discussão são trazidos por mim, Rodrigo evidentemente não perde tempo com dados porque desde o início sabe as conclusões).

O mais surpreendente é mesmo este salto lógico: “Podemos pensar que a espécie recupera apenas pela recuperação do coelho … (mas) toda a gente informada sabe que isto do coelho vai por ciclos, ora aumenta, ora diminui”. Qual é a objecção? O facto da dinâmica da população de coelhos ter ciclos (como refiro explicitamente no artigo) demonstra que nas fases ascendentes dos ciclos não pode haver coincidência com fase ascendente do lince?

Claro que com a falta de necessidade de dados o Rodrigo pode concluir, triunfal: “Podemos mesmo sugerir que os milhões de € investidos na recuperação da espécie mais não foram que deitar dinheiro à rua e uma incrível coincidência - mas isso não passa de um optimismo / negacionismo tão exagerado que concorre à categoria de "sonho húmido" com um toque de "delirium tremens". “. Factos? Dados para a afirmação? Nenhum.

E é muito natural que Rodrigo evite falar dos dados, porque os factos conhecidos são mesmo que não há coincidência: a recuperação do lince inicia-se antes do surgimento dos milhões. Quer isto dizer que eu digo que esses milhões foram dinheiro deitado à rua? Não, de maneira nenhuma eu o digo no texto em causa e só parcialmente o penso.

Esses milhões poderão ter sido úteis para apoiar a recuperação da população de lince que decorre da fase ascendente do coelho, e alguns desses milhões, mesmo que tenham contribuído muito pouco para a recuperação da espécie, como é o caso dos programas de conservação ex-situ, têm de ser gastos, pelo menos parcialmente, a criar um seguro de vida para o caso das coisas correrem muito mal para os linces no próximo ciclo negativo do coelho (ao contrário do que aparentemente pensa o Rodrigo, eu acho que a dependência da população de lince dos ciclos das populações de coelho, somada com a existência cíclicas de epizootias devastadoras no coelho, é um risco muito sério para as populações de lince).

“Mas esqueçam todos aqueles que pensam... bom, pensam é uma palavra demasiado forte - esqueçam todos aqueles acham que uma vez passada uma espécie para o estatuto de "em perigo de extinção", deixa de ser necessário trabalho, acompanhamento e investimento para conservar a espécie.”

Mais uma vez Rodrigo Serra atribui a terceiros um argumento que nunca vi ninguém usar. É uma maneira prática de brilhar numa discussão: inventa-se um argumento que ninguém usou, insinua-se que um idiota qualquer o usou e depois chama-se idiota ao idiota por defender o argumento que nunca defendeu.

Neste caso a única contrariedade é eu não ter medo de ser ostracizado pelos meus pares nem ter medo que me acusem de ter opiniões anti-conservcionistas e portanto perder algum tempo a explicar a um gestor de um gatil (penso que é essa a função do Rodrigo) que um gatil, qualquer que seja o seu objectivo, está conceptualmente mais próximo de um galinheiro que de um habitat e que é portanto normal que quem saiba essencialmente de produção em série de animais tenha algumas dificuldades em discutir conservação com quem trabalha em conservação.

Isso, em si, não é bom nem mau, todos nós trabalhamos naquilo que nos é possível e muitos de nós procuramos simplesmente fazer o melhor que conseguimos o que temos de fazer.

O que talvez seja útil é ter alguma humildade e, da mesma maneira que me escuso a classificar o Rodrigo como um mero facebookista, ou um incapaz de pensar, fazendo considerações sobre se o trabalho do Rodrigo é bom ou mau (não percebo nada de produção pecuária estabulada, o pouco que sei do assunto é em sistemas extensivos e, mesmo assim, em condições um bocado particulares por serem projectos de conservação e não exactamente de produção pecuária) faria bem o Rodrigo em escusar-se a fazer juízos sumários sobre o meu trabalho de conservação, que tem coisas que correram bem e outras que correram mal, que tem coisas de que me orgulho e outras de que envergonho, sem saber a ponta de um chavelho sobre o que eu faço e com que resultados, só porque discorda de um texto qualquer que, como é absolutamente claro, não foi capaz de ler.

No fim é que estou absolutamente de acordo com o texto do Rodrigo: “Mas adiante."

henrique pereira dos santos

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